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Carta 147. Antes de a lama secar

Ponta da Pita, na cidade de Antonina, é uma formação rochosa que avança para a baía. É um local que visito frequentemente, pois fornece uma vista linda da baía de Paranaguá e é um ótimo lugar para observar biguás, trinta-réis e, somente na maré alta, o atobá-pardo (Sula leucogaster). Em 22 de agosto de 2005, durante uma dessas visitas, tive uma grande surpresa. Enquanto estava seguindo com o binóculo o voo gracioso de alguns trinta-réis-de-bando (Thalasseus acuflavidus), vi que estavam descendo na área dos Terminais Portuários da Ponta do Félix, logo atrás do dique de blocos basálticos que forma a divisa oeste daquela propriedade particular. O dique referido fica a uma distância de apenas 570 m da Ponta da Pita. Imediatamente caminhei até o porto, onde pedi permissão na portaria para poder visitar o local onde as aves tinham pousado. O chefe da segurança me explicou que era impossível entrar sem possuir uma permissão prévia, a ser solicitada por escrito, fornecendo os dados pessoais e descrevendo o objetivo da visita, com data, horário exato e a sua duração prevista.

Fiz tudo o que me foi solicitado e quase um mês depois recebi, finalmente, permissão para entrar. O que encontrei naquela primeira visita ao porto superou todas as expectativas. Atrás daquele dique se escondia um grande banco de lama, originária do despejo de material dragado, formando uma planície extensa totalmente tomada pelas aves estuarinas, incluindo o maior número de exemplares de batuíra-de-bando (Charadrius semipalmatus) e talha-mar (Rynchops niger) que jamais tinha visto. Fiz a contagem completa de todas as aves ali presentes. Depois, na minha saída do porto, o chefe da segurança me pediu para eu não divulgar estes dados, para evitar uma afluência de ornitólogos querendo entrar. Prometi que não divulgaria nada enquanto aquele espetáculo duraria. Ao longo dos próximos três anos pude visitar o local mais quatro vezes, para repetir as minhas contagens. Infelizmente, ao longo deste período percebi que estava cada vez mais difícil de obter uma permissão para entrar no porto e a partir de 2009 simplesmente não mais consegui: os meus pedidos dirigidos à diretoria não foram respondidos. Pedi ajuda aos biólogos que trabalham no porto, por telefone e por escrito, mas não adiantou.

Paralelamente, funcionários do porto de escalão menor me informaram que aquele banco de lama tem sido drenado e, após ter secado completamente não mais recebeu visitas de aves estuarinas. Em outras palavras, posso finalmente me sentir livre para divulgar os dados espetaculares obtidos no local ao longo daquele período de quatro anos em que foi me permitido um total de cinco visitas; veja a Tabela 1.

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O espaço lamacento que atraía aquelas enormes quantidades de aves num total de 21 espécies é delimitado por um triangulo de diques de blocos basálticos. Tem superfície de 9,8 hectares, está situado em nível do mar e o ponto central tem a coordenadas 25˚27’28,51” Sul e 48˚40’40,50” Oeste.

A área não tinha contato com a baía e, consequentemente, não estava sujeita à influência da maré. Assim, durante a maré alta se juntavam ali garças para repousar, além de maçaricos e batuíras para continuar se alimentando. Também era um local de descanso, provavelmente o dia todo, para talha-mares, trinta-réis e gaivotões, que ali se sentiram protegidos.

Recentemente tem se formado um extenso banco de lama ao lado sul deste porto, que se inicia na base do dique de pedras basálticas. Vindo da Praia do Pinheirinho e seguindo uma trilha pelo manguezal, uma vez me aproximei deste lamaçal durante a maré baixa. Então escutei as vozes de um grande número de maçaricos e outras aves que ali estavam se alimentando. Infelizmente, as árvores do manguezal impediram uma vista livre no local. Creio que o melhor lugar para observar e contar estas aves é o cume daquele dique do porto. Já que a diretoria do porto não mais me deixa entrar, espero que um dos biólogos que trabalha ali continuem o levantamento das aves estuarinas daquele local espetacular.

Como se pode ver na Tabela 1, algumas espécies de aves estavam presentes naquele banco de lama em todas as minhas cinco visitas, apesar de serem representados por um número de indivíduos bastante variável. Mas em várias visitas foi vista alguma espécie que não foi encontrada em nenhuma das outras quatro ocasiões. São: na primeira visita, Egretta thula (garça-branca-pequena), Pluvialis dominica (batuiruçu) e Tringa solitaria (maçarico-solitário); na segunda, Ardea alba (garça-branca-grande); e na quarta, indivíduos jovens das duas espécies de savacu. Este é exatamente um dos aspectos mais atraentes das visitas aos bancos de lama do litoral: tratando-se de um ambiente instável, cuja avifauna tem de se adaptar constantemente, a qualquer instante pode surgir alguma ave nunca vista antes. Exemplos interessantes recentes deste fenômeno, na baía de Antonina, desde a minha chegada à região em abril de 2003, foram a presença de:

a) um bando de Calidris fuscicollis (maçarico-de-sobre-branco), 34 exemplares ao máximo, uma espécie migratória presente na região somente no período de metade de outubro ao fim de abril, em Antonina observada em quatro anos do período 2004 a 2008 e no município de Guaraqueçaba observada em 2005 e 2013; veja Tabela 2.

b) um grupo de Phimosus infuscatus (tapicuru-de-cara-pelada), 88 exemplares ao máximo, permanentemente presente desde agosto de 2011 até o presente; veja Tabela 3.

Quais outras surpresas deste tipo ainda nos aguardarão?

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REFERÊNCIAS

CBRO (Comitê Brasileiro de Registros Ornitológicos). 2014. Listas das Aves do Brasil. Versão 1/1/2014. Disponível em: <http://www.cbro.og.br>. Acesso em 17 de maio de 2014.

(André de Meijer, 19 de maio de 2014)

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