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Carta 160. O pé fabuloso

Atualmente, após de 12½ anos de residência na APA de Guaraqueçaba (litoral norte do Paraná), está ficando mais raro eu chegar em casa todo entusiasta de alguma novidade presenciado na natureza local. Mas, acabou acontecendo no início deste mês…

A árvore mostrada na foto anexada encontra-se a 750 m oeste da minha residência. Ela está na margem da rodovia PR-405 (a estrada não asfaltada para Guaraqueçaba), no km 35,7. Trata-se de uma espécie de ingá,(a) diferente daquelas que conheço, por ter o ráquis foliar não alado.

Ao caminhar pela estrada e passar por essa árvore, escutei o zumbido caraterístico de beija-flores. Fui verificar e então teve uma grande surpresa: além de beija-flores havia duas espécies de borboletas nada comuns na região, e mais ainda uma linda esfinge, também chamado de mariposa-beija-flor, pois paira diante da flor enquanto beba o néctar, igual aos beija-flores. Já era fim da tarde e começou a chover, o que fez as borboletas se esconder. Mas decidi voltar, pois essa árvore prometia!

O resultado das minhas visitas consecutivas ao local é apresentado na Tabela 1.

Tabela 1. Animais diurnos visitando as flores de um pé de Inga sp. Y, no km 35,7 da rodovia PR-405, Tagaçaba Porto da Linha, Guaraqueçaba, em setembro de 2015.

É interessante que do total de 26 borboletas observadas nessa árvore, 16 (quase dois terços) são espécies de hesperiídeos, e que destas, apenas duas tinha sido visto na região nos dois meses anteriores. Isso me faz suspeitar de que a maioria dos hesperiídeos observados nesta árvore se trata de indivíduos migratórios, vindos do norte, com a aproximação da primavera. Hesperiídeos têm um voo forte e rápido e, segundo Brown Jr. (1992, p. 144), muitos deles migram, vindo de regiões mais quentes e sendo trazidos pelos ventes. Também na América do Norte são conhecidas algumas espécies de hesperiídeos migratórias (Scott 1986, p. 425, 468).

Para quem tem interesse em ler um bom texto sobre a migração de borboletas recomendo o artigo de Carrera 1979.

Entre as borboletas que vi nessas flores de ingá, havia uma das espécies mais lindas do litoral: Phoceides cf. pigmalion, mostrada na foto. Ela é relativamente rara na região e geralmente é visto solitário, mas neste pé de ingá num dado momento havia três exemplares juntos!

Impressionante foi também a ocorrência de nada menos que quatro espécies do gênero Astraptes: para mim é uma variedade recorde de Astraptes visto num único espécime de planta.

Assim, acompanhando a florada de apenas um pé de árvore, consegui ver tantas espécies de borboletas quanto se vê na minha terra natal (Holanda) durante um ano inteiro. Isso mostra, mais uma vez, como nós – seres exóticos dentro da Mata Atlântica -, estamos privilegiados! O mesmo não se pode dizer de algumas dos animais domésticos que trouxemos conosco. Os cavalos em Guaraqueçaba, desde o fim de agosto estão sendo fortemente incomodados pelas mutucas, inicialmente só uma espécie (Tabanus occidentalis), mas hoje já tem outras. Aliás, é curioso o fato das mutucas terem o seu auge num período – a segunda metade da primavera e a primeira metade do verão – quando há relativamente poucas borboletas, como se vê ao comparar as Tabelas 2 e 3.

Na Tabela 3 é mostrado que no litoral norte o melhor período para ver borboletas adultas é o outono. O número de espécies cai no inverno, mas tem um nítido aumento no último mês daquela estação, talvez devido à chegada e passagem de espécies migratórias. Depois, o número cai novamente, sendo o período mais pobre em borboletas adultas a segunda metade da primavera e a primeira metade do verão, exatamente o período em que as mutucas estão no seu auge e nos incomodam mais.

Os hesperiídeos migratórios vistos neste pé de ingá chegaram praticamente juntos com os primeiros indivíduos de aves migratórias: em 5 de setembro chegou aqui o suiriri; em 7 de setembro chegaram tesourinha, bem-te-vi-pirata e andorinha-do-campo; e em 18 de setembro chegaram bem-te-vi-rajado e pomba-galega. Todas essas aves pertencem à categoria que chamamos de ‘residentes de verão’: elas vêm aqui para nidificar. As aves da categoria ‘visitantes do verão’, que apenas vem para passar o verão (se reproduzem na América do Norte, não aqui), devem chegar logo também: trata-se dos maçaricos e da andorinha-de-bando.

Hoje de manhã (19 de setembro, as 5:30h) escutei da minha cama o primeiro canto da mãe-da-lua. O médio do primeiro canto desta espécie, nos últimos quinze anos, tem sido 24 de setembro: é um verdadeiro anunciador da primavera!

Outro sinal seguro da chegada da primavera é o fato de que em 5 de setembro começou na baixada litorânea a florada do guapuruvu (Schizolobium parahyba). Anteontem vi que os dois pés adultos desta espécie no centro de Curitiba (um na Praça Santos Andrade e outro ao lado do Teatro Guaíra, ambos plantados) ainda não florescem. Aliás, na fase inicial da sua florada, não se consegue enxergar ainda as flores amarelas na copa: o jeito é checar se há flores caídas no chão. Fiquem de olho nesses dois pés curitibanos!

(a) Descrição do meu material (Inga sp. Y):

Árvore, 7 m alt., DAP 22 cm (tronco a 50 cm do solo: 45 cm de diâmetro); ramos redondos, cobertos de um tomento marrom-amarelado quando jovens, não lenticelados; estípulas tomentosas, lanceoladas, 5-7 x 2 mm, marrons, sem estrias longitudinais, caducas. Folhas compostas, paripinadas, pecioladas, pecíolos 1-2,5 cm de compr., cilíndricos, não alados; raques foliares não aladas, 2,5-15 cm compr., tomentosas, cilíndricas; folíolos em 4-5 pares, elíptico-lanceolados a lanceolados, folíolos apicais 9,5-25,5 x 3-7,5 cm, basais 6-13,5 x 2-5 cm, ápices acuminados ou acuminado-apiculados, superfícies adaxiais e abaxiais glabras; margens dos folíolos planas; nectários foliares entre cada par de folíolos, sésseis, circulares, 1,2-1,8 mm diâm. Inflorescências axilares, em espigas adensadas, 1-4 por axila, pedúnculos tomentosos, 2,5-4,5 cm compr., raques florais 1-1,5 cm compr.; brácteas ovadas, ápices apiculados, 2 x 1,5 mm, tomentosas, caducas. Flores pentâmeras, actinomorfas, sésseis, ca. 7-25 por inflorescência; cálices tubulosos, sem estrias longitudinais, sépalas 5-6 mm compr., verdes, tomentosas, lacínios regulares triangulares, 2 mm compr., marrom-avermelhados; corolas tubulosas, pétalas 11 mm compr., verde-pálidas, densamente seríceas, lacínios regulares, triangulares, 2 mm compr., verde-pálidas, reflexas; estames monadelfos, ca. 35-50, formando um tubo de 7 mm de compr., filetes branco-puros, 22-33 mm compr., 0,1-0,15 mm de diâm., anteras bitecas, violeta-escuras, 0,3 mm diâm. Frutos não presentes na época da coleta.

Material examinado. Paraná: Guaraqueçaba, Tagaçaba Porto da Linha, rodovia PR-405 km 35,7; 2 de setembro de 2015; leg. A.A.R. de Meijer.

As chaves de Possette & Rodrigues 2010 (para as espécies nativas do PR) e de Burkart 1979 (para as espécies nativas de SC), conduzem imediatamente a Inga vera subsp. affinis (DC.) T.D. Penn. (sinôn. I. affinis DC.). No entanto, naquele táxon o ráquis foliar é nitidamente alado (com “alas terminais 4,5-15 mm largura”) e os estames têm 35-60 mm de comprimento (Possette & Rodrigues 2010), enquanto no meu material o ráquis foliar é totalmente desprovido de alas e os estames não passem de 33 m de comprimento. Assim, logo desconfiei de que o meu material se trata de um espécime plantado, de uma espécie não nativa do Sul do Brasil. Pra certificar isso, voltei ao local em 18 de setembro (ontem), encontrando a árvore já no fim da sua florada (restavam poucas flores) e fui conversar com o proprietário do terreno ao lado. Este logo confirmou o meu suspeito: ele me contou que a árvore foi plantada ali há doze anos, a partir de uma muda trazida de Rondônia, pelo seu próprio irmão.

Deve então se tratar de uma espécie de Ingá do bioma Amazônia. Provavelmente, possa ser identificada com a monografia de Pennington 1997, mas ainda não teve acesso a essa obra.

O gênero Inga Mill. é de distribuição Neotropical, com cerca de 300 espécies, das quais 144 no Brasil e 114 no bioma Amazônia (Lobato et al. 2013).

REFERÊNCIAS

Brown Jr., K.S. 1992. Borboletas da Serra do Japi: diversidade, hábitats, recursos alimentares e variação temporal. In: Morellata, L.P.C. (Ed.). História natural da Serra do Japi. Ecologia e preservação de uma área florestal no Sudeste do Brasil. UNICAMP/FAPESP, Campinas, Carrera, M. 1979. Migração de borboletas. O Estado de São Paulo, São Paulo, 21 de outubro de 1979. Suplemento Cultural. (Reimpresso em: Ciência e Cultura 36: 3-8. 1983).

Burkart, A. 1979. Leguminosas-Mimosóideas. Flora Ilustrada Catarinense, I Parte. As plantas. Fascículo: LEGU. 299 pp.

Carrera, M. 1979. Migração de borboletas. O Estado de São Paulo, São Paulo, 21 de outubro de 1979. Suplemento Cultural. (Reimpresso em: Ciência e Cultura 36: 3-8. 1983).

Lobato, F.F., L.S. Damascena, F.H. Nascimento & L.P. de Queiroz. 2013. Distribuição do gênero Inga Mill (sic) no Brasil. Pôster apresentado no 64º Congresso Nacional de Botânica, 10 a 15 de Novembro de 2013, Belo Horizonte.

Pennington, T.D. 1997. The genus Inga Botany. The Royal Botanic Gardens, Kew. 839 pp.

Possette, R.F.S. & W.A. Rodrigues. 2010. O Gênero Inga Mill. (LeguminosaeMimosoideae) no estado do Paraná, Brasil. Acta Bot. Bras24 (2): … Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-33062010000200006

Scott, J.A. 1986. The butterflies of North America. A natural history and field guide. Stanford University Press, Stanford, U.S.A. 583 pp.

André de Meijer, 19 de setembro de 2015

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