O “boliviano” e o arcebispo
O que Deus reúne a morte não separa. Quem sonha os mesmos sonhos de juventude está para sempre unido.
Amigos e amigas do Movimento Estudantil da PUC
(Faixa de despedida no velório do querido amigo Francisco Garcez, o Chiquinho, em 26 de agosto de 2024)
Era uma vez menino com cara de boliviano. Ou um boliviano com cara de menino. Mas era brasileiro, de Guajará-Mirim. Quase boliviano da gêmea Guayaramerín. Magricela, cabelos pretos escorridos, camisa de manga comprida sempre aberta no peito. Talvez não se desse conta que já não vivia no calor de Rondônia, mas na fria Curitiba. Jovem de jeito simples e sorriso aberto, gostava de teatro e de fazer amigos. E de mulheres.
Não sei bem por que, nem ele o terá sabido (o coração tem razões que a própria razão desconhece), nos fizemos amigos. Mais que amigos. Cosme e Damião. Samuel e Chiquinho, Chiquinho e Samuel. Presidente do Centro Acadêmico de Direito, presidente do DCE. Samuel depois Chiquinho. Chiquinho depois do Samuel.
Sorria sem motivo. Um dia ele me disse que muitos alunos me achavam sério demais. Eu não era, mas a impressão talvez viesse do contraste com o sorriso sempre desfraldado na face dele. Samuel e Chiquinho.
Tanto tínhamos a fazer que não sobrou tempo para contarmos quantos milhões de passos demos juntos no campus da PUC, quantos quilômetros percorremos, quantas aulas interrompemos para dizer aos alunos que as coisas precisavam mudar e podíamos mudar se nos uníssemos.
Muita coisa para contar. Uma. Junho de 1984. Nós (o nosso grupo político de independentes da Católica) já com responsabilidades de direção do movimento na União Paranaense dos Estudantes -UPE, eu na presidência, deixamos um pouco a Católica fora do centro das nossas atenções. A força política da memorável vitória do boicote ao pagamento semestral antecipado e à vista das mensalidades (não havia internet, bastou nos sentarmos às dezenas na frente do corredor que dava à agência do Bradesco no prédio para fechar a torneira da grana), em junho/julho de 1983, já se havia esfumado no tempo. Política é luta para a frente. É movimento.
O Diretório Central dos Estudantes – DCE, Chiquinho na presidência, não havia (não havíamos) feito o dever de casa. A labuta, o esquenta. Sala por sala, cartazes, reunião, assembleias. Numa palavra, campanha. E já era junho. Mais precisamente, segunda semana de junho. Teria mais uma semana de aula. Depois, provas. Em seguida, férias, desmobilização. A nossa pegada, do movimento da PUC, era pouca teoria e muita prática. Não éramos quadros, quadrões, capas pretas, treinados nas correntes de esquerda. Tínhamos mesmo é ligação com a massa. Não ter mobilização (a nossa marca) na PUC (a nossa casa), seria uma vergonha para a diretoria da UPE. Os nossos amigos do PC do B, MR8, PCB, Juventude do MDB, que haviam perdido uma eleição “ganha” para nós, e estavam na oposição, não teriam dó, nem piedade.
Que fazer? – diria Lenin. Que fazer? – pensamos nós.]
Era a hora do gênio. O movimento de massas segue o espírito do tempo. Na PUC de São Paulo os estudantes haviam ocupado a Reitoria na semana anterior. Como não tínhamos tempo para o esquenta tradicional de uma campanha e só tínhamos uma semana antes das provas de final de semestre (depois, férias, universidade vazia, nós sozinhos lambendo as feridas da vergonha da omissão, e, pior, motivo de chacota dos nossos adversários no movimento), simplesmente fomos pra cima, como fortes estivéssemos. Chamamos um Dia de Luta. Assim, no seco! Não foi bem um blefe. O espírito da coisa não era fazer de conta. Era jogar a faísca. E seria o que tivesse que ser. Se fosse fraco o Dia de Lutas, pois bem, teríamos feito o que nos cabia fazer, convocar os estudantes a se reunirem em assembleia.
E se não fosse fraco do dia de mobilização, mas forte, massivo? Se a faísca encadeasse? Aí teríamos um problema, maior do que se a mobilização fracassasse. Receberíamos uma missão, a de levar adiante as reivindicações tiradas no dia de luta, sem, todavia, contarmos com os instrumentos para pressionar a Reitoria. O que fazer com a energia despertada no dia de luta, se logo em seguida teríamos a semana de provas do final do segundo bimestre (e do semestre) e depois a meninada iria para a casa da mamãe e do papai? O que fazer com as bandeiras/reivindicações que surgiriam do dia de lutas se depois teria provas e depois campus vazio?
O sapo não pula por boniteza, mas porém por precisão (“A hora e vez de Augusto Matraga”). Era tudo ou nada! Somente um ato grandioso, simbólico, em si mesmo representativo da disposição de luta, radical, poderia reter a energia reunida no dia de luta e direcioná-la. Só um ato heroico poderia nos salvar do opróbio (sim, estávamos também preocupados com a nossa pele e o nosso pelo, senhores da oposição, o confessamos hoje, 40 anos depois).
E ato veio como havia de vir, grandioso, inédito, surpreendente: a inesquecível ocupação da Reitoria (e depois de todo o campus, ou quase todo, pois tivemos a gentileza de deixar o ginásio de esportes para a Reitoria funcionar o estupefato gabinete de crise) por quase trinta dias no gélido julho curitibano.
Lembra Chiquinho? Como esquecer, né? Você era o presidente do DCE. Autoridade máxima do território ocupado a receber Sua Excelência Reverendíssima na porta do prédio ocupado. Tem foto e tudo do histórico encontro do raquítico estudante “boliviano” com o bem nutrido arcebispo Curitiba, na porta da Reitoria ocupada, para negociar a paz no meio da estudantada.
Foi assim.
Agora que o Chiquinho partiu para fazer movimento no Céu, me pergunto se o moleque de Guarajá-mirim já planejava traquinagens de Odisseia quando se banhava no Mamoré entre tambaquis, curimatás, surubins e capararis? Eu mesmo não duvido, que estes descendentes dos Incas não são de se matar com a unha!
Samuel Gomes
Aquele (tido por sério) que caminhava ao lado do sorridente Chiquinho pelos corredores da PUC.