Rescaldo da enchente em Tagaçaba
Carta 208. Calamidades naturais
Imagino que, ao repensar nossa existência ao fim da vida, lembraremos mais intensamente os eventos que causaram emoções muito fortes.
Quem atravessou uma guerra (meus pais e avós) terá reminiscências daquele período mais negro da sua vida. Quem passou por uma catástrofe natural, voltará a se lembrar desta situação angustiante.
Muitas
obras de literatura são tecidas em volta de acontecimentos
catastróficos. Não fugiram a essa regra, os últimos dois romances
que li:
-
L’oeuvre
ao noir
(A obra em negro), de Marguerite Yourcenar (1968) é um romance
histórico, ambientado na primeira metade do século XVI, época de
Lutero, de Paracelso, do papa holandês Hadrianus, de Nostradamus e
de Calvino. E nos tempos da inquisição, combates entre católicas e
protestantes, eliminação das seitas religiosas, peste negra, fase
final do assoreamento do porto de Brugge, etc. Descreve a vida de um
alquimista, que iniciou seus estudos com a obra enciclopédica
Naturalis
historia
de Gaius Plinius Secundus. Este Plínio morreu em 79 d.C., como
vítima daquela erupção do Vesúvio que soterrou as cidades de
Pompeii e Herculaneum.
“A
obra em negro” é um livro admirável, mas de leitura pesadíssima,
pois foi composto como um quebra-cabeça de milhares de pedacinhos.
-
Storia
dela bambina perduta
(História da menina perdida), de 2014, é o quarto e último romance
da série napolitana de Elena Ferrante. A sequência oferece um
retrato da vida pós-guerra num bairro pobre de Nápoles, cidade
italiana próxima ao Vesúvio. Neste quarto volume são lembrados
atentados cometidos por parte de “ativistas” da extrema esquerda
(lembra-se de Battisti e outros) e da extrema direito, e o terremoto
de 23/11/1980, que causou a morte de quase três mil pessoas logo ao
leste de Nápoles.
Essa
série de quatro livros forma uma verdadeira obra-prima. É de
leitura surpreendentemente leve, apesar do conteúdo pesado.
No
Brasil e na Holanda, felizmente, não precisamos temer de sermos
mortos por uma erupção vulcânica ou por um terremoto. Mas, nestes
países, cheios de diques (Holanda) e barragens (Brasil), existe a
possibilidade de morrer afogado na água ou na lama!
Em
01/02/1953 faltavam dez dias para a minha futura mãe fazer 25 anos.
Ela morava com seus pais e irmãos numa granja situada logo atrás do
dique marítimo, próximo à cidade holandesa de Hoofdplaat. A
sizígia daquele dia coincidiu com uma tempestade horrível do
Noroeste e a maré altíssima bateu com tanta força nos diques que
estes quebraram em muitos pontos, causando grandes inundações a
sudoeste do país. O dique do pôlder contendo a granja da minha mãe
resistiu, mas um pôlder vizinho inundou. Os meus avós hospedaram
uma parte dos refugiados na sua granja e outra parte foi levada para
a granja da minha família paterna, em IJzendijke, pois as duas
famílias já estavam unidas por causa do noivado dos meus pais.
Aquela
calamidade resultou num total de 2395 mortes, das quais 1836 na
Holanda (além de 307 mortes no Reino Unido, 224 no mar e 28 na
Bélgica). As pessoas morreram por afogamento, ou por congelamento,
pois era pleno inverno. A história da Holanda estava cheia de
inundações calamitosas, mas então o governo decidiu que esta tinha
seria a última: foi elaborado o notório ´Plano Delta’ e
começaram as obras de aumento e fortalecimento dos diques externos.
Além disso, em cada cidade foi construída uma piscina pública a
céu aberto (sem aquecimento, somente aberta no verão) e, assim,
todos os holandeses do pós-guerra aprenderam a nadar.
No
Brasil continua havendo inundações com muita frequência, por toda
parte, sempre causando algumas mortes por afogamento, já que muitos
brasileiros não tiveram a sorte de aprender nadar. Eu mesmo tenho
residido em área de várzea a maior parte da minha vida brasileira:
na várzea do rio Iguaçu em Curitiba, de 1979 a 2000 e na várzea do
rio Tagaçaba em Guaraqueçaba, de 2013 até o presente (ver Tabela
1). Em ambos os locais assisti a muitas enchentes (ver Tabela 2) e,
por sorte, apenas duas inundações chegaram a invadir as minhas
respectivas residências e causaram perda de material, principalmente
de livros. A primeira vez foi em 1995 e um relato detalhada será
apresentado na minha próxima circular: “Carta
209.
Grande enchente do rio Iguaçu, Curitiba, janeiro de 1995”.
A segunda vez aconteceu há um mês, em Tagaçaba e segue aqui o meu
relato:
Grande
enchente do rio Tagaçaba, Guaraqueçaba, janeiro de 2019
Sexta-feira,
4 de janeiro.
Embarco
à noite, em Tagaçaba, no ônibus Guaraqueçaba-Curitiba, pois
na próxima semana terei de fazer dois levantamentos biológicos nos
Campos Gerais. A linha Guaraqueçaba-Curitiba funciona apenas três
dias por semana: 2a-feira, 4a-feira e 6a-feira e se espero até o
próximo ônibus (2a-feira), não terei tempo o suficiente para
preparar a viagem aos Campos Gerais.
Domingo,
6 de janeiro.
Dois
amigos (Gabriela, de Antonina; Júlio, de Piraquara) me mandaram um
e-mail no qual ofereciam ajuda por causa da terrível enchente que eu
teria sofrido em Tagaçaba! Eu não sei de nada! Pesquiso na Internet
e logo encontro a informação confirmada. Em Tagaçaba, a partir da
noite de 4 de janeiro até meio dia de 5 de janeiro, choveu 261 mm
num prazo de apenas 13 horas! Devido a maré muito alta (sizígia da
lua nova), o enorme volume de água fluvial não podia afluir na
baía, o que resultou numa enorme enchente. A enchente durou pouco
tempo, pois, tratando de sizígia, a maré muito alta foi seguida por
uma maré muito baixa.
Segunda-feira,
21 de janeiro.
Devido
aos meus trabalhos de levantamento biológico, acabei permanecendo no
Planalto por duas semanas seguidas. A minha volta a Tagaçaba foi
adiada até a manhã de 21 de janeiro. Ao chegar, logo percebi que a
água invadiu a casa. O piso interno estava coberto com uma fina
camada de terra, já totalmente seca, de cor marrom-amarelada
(Kornerup
& Wanscher 1978: código 5D5, “clay”). Depois, vi sob o
microscópio que!-->!-->!-->!-->!-->!-->!-->!-->!-->!-->!-->!-->!-->!-->!-->!-->!-->!-->!-->!-->!-->!-->!-->!-->!-->!-->!-->!-->!-->!-->!-->!-->!-->!-->!--more-->!-->!-->!-->!-->!-->!-->!-->…