Carta 146. O ‘sururu-de-alagoas’ é o bacucu de Antonina
Lembro-me, da época anterior à minha emigração ao Brasil, que na Holanda se recomendava não consumir peixe marinho mais do que uma vez por semana, pois o Mar do Norte se encontrava muito poluído. A poluição era causada por alguns dos rios que desaguam nele, como Reno, Meuse, Weser e Elba e também por então se tratar do mar mais intensamente navegado do mundo.Na minha terra natal se aprendia que é um privilegio grande poder consumir à vontade qualquer produto do mar. Assim, quando cheguei a Curitiba, há 35 anos, logo me descobri um privilegiado e comecei a consumir sardinhas quase diariamente, um costume que mantenho até hoje. Pois as águas do oceano continuam relativamente limpas em comparação a aquelas dos mares restritos. Há onze anos, quando me mudei do planalto paranaense para o litoral, descobri outro alimento delicioso, proveniente da baía e que comecei a consumir semanalmente na época que esteja disponível. Trata-se do bacucu, um marisco da costa leste americana, distribuído do México a Argentina e vendido nas peixarias de Antonina e Paranaguá. Na Holanda o marisco Mytilus edulisé considerado uma iguaria: é vendido vivo, fechado dentro das valvas e, assim, o seu preparo é um pouco trabalhoso. Contudo, diferente da Holanda, o consumidor brasileiro pode se considerar um privilegiado: o bacucu é vendido sem valvas e por um preço muito acessível.
Caminhando pelo bairro Itapema da cidade de Antonina (litoral norte do Paraná), próximo à Praia dos Polacos você encontrará grandes amontoados de valvas do bacucu e conchas da ostra-do-mangue. Foram jogadas ali pelos próprios pescadores locais. Em Portinho, no bairro da Graciosa, outra região de Antonina com concentração de pescadores, praticamente não há colhedores de bacucu (fato constatado também pelo Robert et al. 2007); lá a maioria se concentra na pesca de siri, que é vendido a dúzias. Os pescadores utilizam bagre como isca para pescar siri.
Para apoiar os pescadores de Antonina, o governo estadual construiu no bairro de Portinho o restaurante “Siri do Portinho”. Ali o cliente era atendido pelas próprias mulheres do local. Posteriormente, tem sido reduzido a um espaço de locação para festas.
Por sua vez, no bairro Itapema (na Rua Lourival R. Passos, próximo à Praia dos Polacos), com verbas do governo federal foi iniciada a construção da “Casa da Marisquera”. Pretendia ser uma cobertura grande onde as famílias poderiam vir a fazer a limpeza de bacucu e siri, em vez de continuar fazendo este trabalho, muitas vezes em condições precárias, no próprio quintal das residências, já que aquela limpeza é tradicionalmente feita por mulheres: assim, a Casa da Marisqueira ganhou um substantivo feminino. Uma parte daquela construção está pronta desde 2012, quando foram paralisadas as obras por falta de verbas. O local não foi inaugurado até hoje.
Há alguns anos (em 6 de fevereiro de 2012) tive a sorte de estar passeando pela Praia dos Polacos bem na hora que os tripulantes de duas canoas a remo descarregavam na praia alguns balaios cheios de bacucu vivo, fazendo ali mesmo a primeira lavagem da sua colheita lamacenta. Enquanto observava a atividade bombardeava os pescadores de perguntas sobre este seu trabalho. Tratava-se de um grupo de cinco mulheres e três homens, todos da mesma família. Eles foram muito gentis, respondendo todas as perguntas deste transeunte curioso.
Contaram-me (informações posteriormente confirmadas por outros pescadores) que o bacucu vive de forma gregária em bancos de lodo preto, onde se encontre enterrado a alguns centímetros de profundidade e é colhido durante a maré baixa. Para mariscar é geralmente usado um pequeno barco de madeira, a motor, com duas canoas a reboque. O barco é aberto, mas tem no centro uma pequena cobertura sustentada por quatro estacas, para o tripulante poder se proteger do sol. A canoa a remo serve, na ida, para atravessar a pequena distancia entre o barco ancorado e o baixio lodoso e, na volta, para do barco ancorado próximo à praia transportar os balaios contendo os mariscos até a praia.
No banco de lama, os bacucus individuais vivem unidos pelo bisso em cachos extensos. Os cachos são colhidos manualmente e jogados num balaio (com tamanho variando entre cerca de 60 a 120 cm de diâmetro), onde os cachos acumulados são virados (com enxada, para não machucar as mãos nas valvas) e separados da lama.
Das oito pessoas daquela família, sete tinham participado na colheita de bacucu, enquanto a oitava chegou à praia somente para ajudar no descarregamento e na trabalhosa lavagem do bacucu. Os balaios usados para o transporte e a lavagem têm pequenas aberturas no fundo e aos lados, para que a lama possa escorrer.(a) Foram trançadas por um dos pescadores da família e são feitas de ’timbupeva’ fendida ao meio. Eles me contaram que a timbupeva (trata-se das raízes aéreas de Philodendron crassinervium; veja Sonda et al. 2006) foi colhida na floresta bem preservada no outro lado da baía. Além destes balaios vegetais a família usou para o transporte e lavagem também um recipiente de material sintético: um barril de plástico azul espesso e de 60 cm de diâmetro, cortado transversalmente e em cuja parede e fundo foram feitas numerosas perfurações redondas. Estas perfurações, com diâmetro máximo de 18 mm, deixam passar a lama, mas não o bacucu. Após a lavagem na praia, os bacucus são colocados em sacos de polipropileno imitando ráfia (volume 25 kg) e transportados até a residência do pescador, onde os bacucus são jogados numa grande panela de água fervente. Logo que abrem as valvas, são tirados da água e manualmente ‘desmariscados’, isso é, a carne retirada das valvas é separada do bisso. No trabalho de desmariscar, é tomado muito cuidado para não entrarem fragmentos da valva ou permanecerem restos do bisso no produto final. O proprietário de uma peixaria na Ponta da Pita me contou que o sabor da carne de bacucu não é bom quando se encontra misturado com bisso.
Os marisqueiros de Antonina colhem somente!--more-->…