Carta 146. O ‘sururu-de-alagoas’ é o bacucu de Antonina
Lembro-me, da época anterior à minha emigração ao Brasil, que na Holanda se recomendava não consumir peixe marinho mais do que uma vez por semana, pois o Mar do Norte se encontrava muito poluído. A poluição era causada por alguns dos rios que desaguam nele, como Reno, Meuse, Weser e Elba e também por então se tratar do mar mais intensamente navegado do mundo.
Na minha terra natal se aprendia que é um privilegio grande poder consumir à vontade qualquer produto do mar. Assim, quando cheguei a Curitiba, há 35 anos, logo me descobri um privilegiado e comecei a consumir sardinhas quase diariamente, um costume que mantenho até hoje. Pois as águas do oceano continuam relativamente limpas em comparação a aquelas dos mares restritos. Há onze anos, quando me mudei do planalto paranaense para o litoral, descobri outro alimento delicioso, proveniente da baía e que comecei a consumir semanalmente na época que esteja disponível. Trata-se do bacucu, um marisco da costa leste americana, distribuído do México a Argentina e vendido nas peixarias de Antonina e Paranaguá. Na Holanda o marisco Mytilus edulisé considerado uma iguaria: é vendido vivo, fechado dentro das valvas e, assim, o seu preparo é um pouco trabalhoso. Contudo, diferente da Holanda, o consumidor brasileiro pode se considerar um privilegiado: o bacucu é vendido sem valvas e por um preço muito acessível.
Caminhando pelo bairro Itapema da cidade de Antonina (litoral norte do Paraná), próximo à Praia dos Polacos você encontrará grandes amontoados de valvas do bacucu e conchas da ostra-do-mangue. Foram jogadas ali pelos próprios pescadores locais. Em Portinho, no bairro da Graciosa, outra região de Antonina com concentração de pescadores, praticamente não há colhedores de bacucu (fato constatado também pelo Robert et al. 2007); lá a maioria se concentra na pesca de siri, que é vendido a dúzias. Os pescadores utilizam bagre como isca para pescar siri.
Para apoiar os pescadores de Antonina, o governo estadual construiu no bairro de Portinho o restaurante “Siri do Portinho”. Ali o cliente era atendido pelas próprias mulheres do local. Posteriormente, tem sido reduzido a um espaço de locação para festas.
Por sua vez, no bairro Itapema (na Rua Lourival R. Passos, próximo à Praia dos Polacos), com verbas do governo federal foi iniciada a construção da “Casa da Marisquera”. Pretendia ser uma cobertura grande onde as famílias poderiam vir a fazer a limpeza de bacucu e siri, em vez de continuar fazendo este trabalho, muitas vezes em condições precárias, no próprio quintal das residências, já que aquela limpeza é tradicionalmente feita por mulheres: assim, a Casa da Marisqueira ganhou um substantivo feminino. Uma parte daquela construção está pronta desde 2012, quando foram paralisadas as obras por falta de verbas. O local não foi inaugurado até hoje.
Há alguns anos (em 6 de fevereiro de 2012) tive a sorte de estar passeando pela Praia dos Polacos bem na hora que os tripulantes de duas canoas a remo descarregavam na praia alguns balaios cheios de bacucu vivo, fazendo ali mesmo a primeira lavagem da sua colheita lamacenta. Enquanto observava a atividade bombardeava os pescadores de perguntas sobre este seu trabalho. Tratava-se de um grupo de cinco mulheres e três homens, todos da mesma família. Eles foram muito gentis, respondendo todas as perguntas deste transeunte curioso.
Contaram-me (informações posteriormente confirmadas por outros pescadores) que o bacucu vive de forma gregária em bancos de lodo preto, onde se encontre enterrado a alguns centímetros de profundidade e é colhido durante a maré baixa. Para mariscar é geralmente usado um pequeno barco de madeira, a motor, com duas canoas a reboque. O barco é aberto, mas tem no centro uma pequena cobertura sustentada por quatro estacas, para o tripulante poder se proteger do sol. A canoa a remo serve, na ida, para atravessar a pequena distancia entre o barco ancorado e o baixio lodoso e, na volta, para do barco ancorado próximo à praia transportar os balaios contendo os mariscos até a praia.
No banco de lama, os bacucus individuais vivem unidos pelo bisso em cachos extensos. Os cachos são colhidos manualmente e jogados num balaio (com tamanho variando entre cerca de 60 a 120 cm de diâmetro), onde os cachos acumulados são virados (com enxada, para não machucar as mãos nas valvas) e separados da lama.
Das oito pessoas daquela família, sete tinham participado na colheita de bacucu, enquanto a oitava chegou à praia somente para ajudar no descarregamento e na trabalhosa lavagem do bacucu. Os balaios usados para o transporte e a lavagem têm pequenas aberturas no fundo e aos lados, para que a lama possa escorrer.(a) Foram trançadas por um dos pescadores da família e são feitas de ’timbupeva’ fendida ao meio. Eles me contaram que a timbupeva (trata-se das raízes aéreas de Philodendron crassinervium; veja Sonda et al. 2006) foi colhida na floresta bem preservada no outro lado da baía. Além destes balaios vegetais a família usou para o transporte e lavagem também um recipiente de material sintético: um barril de plástico azul espesso e de 60 cm de diâmetro, cortado transversalmente e em cuja parede e fundo foram feitas numerosas perfurações redondas. Estas perfurações, com diâmetro máximo de 18 mm, deixam passar a lama, mas não o bacucu. Após a lavagem na praia, os bacucus são colocados em sacos de polipropileno imitando ráfia (volume 25 kg) e transportados até a residência do pescador, onde os bacucus são jogados numa grande panela de água fervente. Logo que abrem as valvas, são tirados da água e manualmente ‘desmariscados’, isso é, a carne retirada das valvas é separada do bisso. No trabalho de desmariscar, é tomado muito cuidado para não entrarem fragmentos da valva ou permanecerem restos do bisso no produto final. O proprietário de uma peixaria na Ponta da Pita me contou que o sabor da carne de bacucu não é bom quando se encontra misturado com bisso.
Os marisqueiros de Antonina colhem somente bacucu, não o seu parente próximo, o sururu. A razão disso é que o bacucu pode ser colhido de cachos, enquanto o sururu tem de ser colhido um por um, usando uma enxada. As duas espécies são bastante parecidas, mas o sururu vive no manguezal, próximo às raízes de canapuva (Rhizophora mangle), ou cresce em cima das ostras-do-mangue. Além da diferença no hábitat, as espécies se distinguem pelo fato de o sururu alcançar comprimento um pouco maior e, principalmente, ter as valvas um pouco menos alongadas. Segundo medições pessoais, a razão comprimento/altura das valvas é 1,9-2,0 no sururu e é 2,2-2,7 no bacucu. Outra diferença nítida ocorre na charneira, localizada na parte interna da ponta estreita da valva. Na charneira do bacucu ocorrem alguns pequenos dentes, que são ausentes no sururu.
Assim pude verificar com absoluta segurança que o ‘bacucu’ dos pescadores do litoral norte do Paraná (Antonina, Guaraqueçaba e Paranaguá) corresponde a Mytella charruana (sinôn. M. falcata), enquanto o ‘sururu’ da mesma região corresponde a M. guyanensis (sinôn. Modiolus brasiliensis).(b)É interessante que os autores de algumas obras brasileiras de referencia usam estes nomes populares exatamente no sentido oposto (p.ex. Ferreira 1999; Rios 1994, 2009), e este exemplo foi seguido pelo Pereira et al. 2003, que pesquisou os marisqueiros dos municípios de Iguape e Ilha Comprida, no litoral paulista.(c)
Encontrei como comprimento das valvas do bacucu e sururu comercializados os seguintes valores: 38-48 mm para a primeira espécie (medido em janeiro de 2012, num dos amontoados de conchas na Praia dos Polacos) e de 43-65 mm para a segunda (medido em 14 de fevereiro de 2012, no Mercado Municipal de Paranaguá). Estas medidas correspondem perfeitamente àquelas encontradas há dez anos por Pereira et al. 2003 na Ilha Comprida e Iguape, onde os indivíduos comercializados de M. charruana (aqueles autores usam o nome sinônimo: M. falcata) e de M. guyanensis tinham comprimento de 30-46 mm e 40-65 mm, respectivamente. Os marisqueiros daquela região sabem que indivíduos abaixo destes tamanhos têm o rendimento de carne baixo (Pereira et al. 2003).
Os marisqueiros de Antonina me contaram que há duas décadas o bacucu ainda era abundante em frente à cidade e podia ser colhido ali mesmo para fins comerciais.Atualmente está bem mais escasso naquele local, além de morrer cedo. Ospescadores acreditam que o assoreamento da baía (ver Boldrini & Paula 2008) é a principal causa disso; devido ao assoreamento, na maré alta a água salgada do mar não mais alcançaria o fundo da baía, na altura dos cais de Antonina, onde a salinidade média da água assim teria se tornado demasiadamente baixa para o crescimento deste molusco.(d)
Na opinião dos pescadores o assoreamento é uma consequência do aumento da vazão do Rio Cachoeira e, por sua vez, este aumento seria uma consequência da transposição do Rio Capivari no Rio Cachoeira, através do canal fuga da usina Governador Parigot de Souza, da COPEL (ver Bandeira 2007, Boldrini 2007).
É interessante que nenhum dos pescadores que entrevistei mencionou, entre as causas prováveis do assoreamento, o desmatamento ocorrido em toda a bacia de drenagem litorânea (tanto da Baía de Paranaguá quanto da Baía de Guaratuba). E, igualmente interessante,é que não mencionaram entre as razões do escassamente local do bacucu, a possível falta de cuidado com a dinâmica de população, ou a própria sobrepesca.
Atualmente, na baía de Paranaguá, a posição média da isohalina de 30 (divide os setores mesohalinoe polihalino)(e) está situada aproximadamente entre a Ilha da Teixeira e a Ilha da Ponta (ver Hostin et al. 2007, fig. 1). Já que no fundo da baía a salinidade diminuiu ao longo das últimas décadas, como os pescadores garantem, a localização média desta isohalina está se deslocando em direção leste.
Os pescadores acham que tem de ser tomado muito cuidado ao tentar reduzir o efeito do assoreamento através de obras de dragagem. Esta opinião foi evidenciada num trabalho de entrevistas de 2006 (Robert et al. 2007), quando a maioria dos pescadores consultados considerou a dragagem, assim como o vazamento de produtos químicos, os principais responsáveis pela redução na captura de bacucu e ostra. O resultado daquela pesquisa foi sem dúvida muito influenciada pelos seguintes acontecimentos:
a) em 1996 foi feito uma obra de dragagem na Baía de Paranaguá considerada desastrosa pelos pescadores locais;
b) desde 2001 tinham acontecido três acidentes ambientais de consequência muito grave para a pesca local, sendo:
(i) o rompimento do oleoduto de Petrobras na Serra do Mar, em 16 de fevereiro de 2001, com 4.000 mil litros de óleo diesel vazando num afluente do Rio Nhundiaquara e entrando na baía, onde, segundo os pescadores, causou grande mortandade na fauna de mangue e dos bancos areno-lodosos;
(ii) um navio petroleiro se chocou em uma pedra na baía, em 18 de outubro de 2001, com 392 mil litros de nafta vazando na Baía de Paranaguá;
(iii) a explosão do navio Vicuña no Porto de Paranaguá, em 15 de novembro de 2004, com um milhão de litros de óleo combustível vazando para dentro da baía.
Como atualmente ocorre pouco bacucu próximo a Antonina, os marisqueiros daquela cidade (situada no setor mesohalino da baía) estão se deslocando até a parte central da baía. Costumam ir até os bancos situados em frente ao Europinho (no continente), na altura das ilhas Jererê ou Gererís (inform. pess., confirmado em Robert et al. 2007), a uma distância oeste de 12 km da Ponta da Pita. O bacucu continua sendo abundante nos baixios lodosos ao lado leste da Ilha do Teixeira, onde começa o setor polihalino da baía, ou seja, uma porção de maior salinidade.
Voltando para aquela família da Praia dos Polacos, no dia da entrevista os encontrei desembarcando às 14h. A baixa–mar havia ocorrida entre 8:21h (Terminal Portuário da Ponta do Félix) e 8:30h (Porto de Paranaguá – cais oeste).(f) Isto demonstra que a viagem de volta ao local de embarque tinha sido demorada.
Nas peixarias de Antonina o bacucu (também chamado de marisco no comércio local), atualmente está sendo vendido a doze reais por quilo. Os proprietários das peixarias já compram dos marisqueiros o produto limpo (sem valvas), pagando oito a dez reais o quilo. Nas mesmas peixarias também se vende o mexilhão,Perna perna, proveniente de cultivo em Santa Catarina,(g) a dezesseis reais por quilo limpo. A cor do carne das duas espécies é diferente; no mexilhão é avermelhada ou branca, enquanto no bacucu é amarelada. O bacucu servido nos restaurantes de Morretes, município vizinho, provém dos marisqueiros antoninenses.
Em Antonina,ás vezes o bacucu é vendido ainda fechado nas valvas, a dois reais ‘por litro’. Este tipo de comercio é ambulante e de pequena escala, com o bacucu sendo transportado dentro de um saco grande (tamanho 25 kg) em cima de um carrinho de mão e oferecido de casa em casa. Uma lata de azeite vazia é usada como medidor do volume (um litro).
Estima-se que em Antonina umas cem pessoas vivem da colheita de bacucu (excluindo da contagem os moradores das ilhas). Apesar de não haver ‘defesa’ para o bacucu (época proibitiva), a sua colheita não acontece no período de abril a julho (outono a início do inverno), quando o animal estaria morto dentro das valvas (com as valvas semiabertas), ou com a carne muito reduzida. De fato, num levantamento abrangente da pesca artesanal do litoral paranaense, feita de maio a dezembro de 1975, a maior oferta do bacucu no mercado municipal de Antonina acontecia no mês de setembro e o produto estava totalmente ausente ali nos meses de maio a julho (Loyola e Silva et al. 1977, tab. XVI-B).
As valvas do bacucu se intemperizam rapidamente e o material decomposto é aplicado nas lavouras locais para diminuir a acidez do solo.
O bacucu de Antonina, M. charruana, é também conhecido como ‘sururu-de-alagoas’ pois, como em Antonina, na região da Lagoa Mundaú alagoana, muitas famílias pobres vivem da coleta e venda desta espécie, e é interessante que a forma como é colhida e trabalhada (Nomura 1985) é bem parecida nestes dois lugares, distantes 5500 km um do outro.
Além do bacucu e do mexilhão, nenhuma outra espécie de molusco marinho está sendo comercializada em Antonina. Assim, para obter informações sobre outros moluscos comestíveis comercializados no litoral do Paraná fui visitar a cidade de Guaraqueçaba. Descobri que os pescadores daquela cidade se concentram no siri e camarão e também na pesca da tainha na época da migração. O bacucu é colhido apenas para consumo próprio. Conforme me informaram, muitos residentes da vizinha Ilha Rasa pescam bacucu e também sururu, para vender no Mercado Municipal de Paranaguá. Atualmente, há duas pequenas peixarias na cidade de Guaraqueçaba, mas o seu horário de funcionamento é imprevisível, pois frequentemente as encontro fechadas.
Em 1975 os únicos locais de comercio de moluscos marinhos no litoral do Paraná eram as cidades de Antonina e, principalmente, Paranaguá (Loyola e Silva et al. 1977, fig. 2). Aparentemente, desde então esta situação pouco mudou.
Ficou claro que para saber mais do assunto eu deveria de ir a Paranaguá. Assim, a partir de fevereiro de 2012 fiz várias visitas ao Mercado Municipal de Paranaguá, mais especificamente à parte conhecida como “Mercado da Ostra”. As espécies de moluscos encontradas à venda, os seus preços e a sua procedência, são listadas na Tabela 1. Ao total, quatro espécies foram encontradas, mas apenas uma delas, a ostra-do-mangue, estava à venda durante todas as minhas visitas.
Tabela 1. Moluscos vendidos vivos no ‘Mercado da Ostra’ de Paranaguá, a partir de 2012, em vários dias da semana.(1)
(1) Todas as quatro espécies estavam sendo vendida unicamente ‘na casca’, isso é, vivo na concha ou dentro das valvas.
(2) O preço varia conforme o tamanho da concha.
‘Berbigão’ (Anomalocardia brasiliana)
No Complexo Estuarino de Paranaguá (CEP), que integra as baías de Antonina, Paranaguá e Guaraqueçaba, esta espécie “tem distribuição ampla (…), ocorrendo desde a entrada até os setores com salinidades médias de 17‰, havendo a formação de bancos extensos no setor mediano da baía. Ocorre, preferencialmente, nos primeiros 5 cm no sedimento (…)” (Boehs 2000), mas é encontrada até “uma profundidade de aproximadamente 15 cm” (Gofferjé 1950). O comprimento máximo da espécie é cerca de 35 mm e “do ponto de vista da manutenção dos estoques naturais na região”, é recomendado pescar somente animais maiores de 25 mm” (Boehs 2000). Os marisqueiros de Antonina não pescam o berbigão e dizem que a espécie ocorre somente a leste da Ilha do Teixeira.
Na metade do século passado Gofferjé 1950 comunicou que o berbigão se encontrava “a venda nos mercados públicos”. De fato, no passado o seu comércio tem sido muito significativo. No período de maio a dezembro de 1975 o peso do produto colhido desta espécie no litoral paranaense foi quase quatro vezes maior do que o do bacucu, ligeiramente maior do que o da ostra-do-mangue e atingiu quase a metade da produção total de moluscos (Loyola e Silva et al. 1977, tab. XIX). Naquela época, o berbigão era colhido durante todos os meses do ano e vendido nas valvas, por litro. Nos últimos anos a produção desta espécie tem caído muito e atualmente está sendo colhida apenas por encomenda.
‘Amêijoa’ (Phacoides pectinatus)
No Paraná a amêijoa’ é comum nas praias de dentro e de fora (Gofferjé 1950, Hostin et al. 2007). Em Paranaguá todos os pescadores a conhecem, enquanto em Antonina a última geração de pescadores desconhece totalmente não apenas o animal, mas também o próprio nome amêijoa. Os pescadores antoninenses com mais idade me contaram que até cinquenta anos atrás a espécie ainda era pescada na proximidade de Antonina, mas com o assoreamento da baía ela foi se afastando dali.
As amêijoas que encontrei em 10 de março de 2012 no “Mercado da Ostra” eram grandes e de tamanho bem uniforme: todos com aproximadamente 70 mm de comprimento. As amêijoas medidas por Gofferjé 1950 foram bem menores: tinham comprimento máximo de 57 mm e médio de 49 mm. Segundo Boffi 1979 os exemplares maiores da amêijoa podem alcançar 90 mm. Tratando-se de valvas largas e quase redondas (o comprimento e a altura são quase iguais), este é um dos moluscos marinhos paranaenses de maior volume interno. Considerando somente as espécies abundantes, é seguido em tamanho pela Tivela mactroides e T. zonaria, que no meu material paranaense alcançavam o comprimento de 68 e 63 mm, respectivamente (T. zonaria pode alcançar 100 mm de compr., segundo Boffi 1979). Talvez seja devido a este tamanho que as referidas espécies de Tivela, ambas comestíveis, são chamadas de ‘amêijoa-de-mar-grosso’ pelos pescadores paranaenses do mar de fora.
Umm pescador de Paranaguá me contou que a amêijoa “sangra na lua cheia de agosto” e depois deste evento os pescadores deixam de colhê-la por alguns meses.
Segundo outro pescador encontrado no Mercado da Ostra, o manguezal da desembocadura do rio Guaraguaçu seria um bom local de pesca da amêijoa: ali é possível obter 40 kg de amêijoa por dia. Mencionaram o rio Maciel como sendo o local de procedência das amêijoas que encontrei a venda. Ambos os rios referidos são situados no município de Pontal do Paraná e desembocam no setor euhalino da Baía de Paranaguá.
Ainda outro pescador me contou que “havia algum tempo um coreano de Curitiba” encomendava grandes caramujos marinhos da região, que ele pagava por dúzia e do qual aproveitava tanto a carne quanto a concha (venda como artesanato). Imagino que estes ‘caramujos’ incluíram representantes do gênero Olivancillaria, já que O. auricularia “é utilizado como alimento pelas comunidades litorâneas” (Thomé et al. 2010).
Segundo Gofferjé 1950 são também utilizadas como alimento no litoral paranaense as seguintes duas espécies:
‘Marisco-branco’ (Mesodesma mactroides)
Ocorre em “fundos arenosos de enseada e baía” e “encontra-se enterrada, em aproximadamente 20 cm de profundidade” (Gofferjé 1950). Os pescadores de Paranaguá que entrevistei me contaram que ela às vezes é colhida para consumo próprio, mas não é comercializada.
‘Broóca’ ou ‘bruóca’ (Erodona mactroides)
Vive “enterrada a cerca de 10 cm em baixos areno-argilosos e limosos do interior da baía” (Gofferjé 1950). Segundo os pescadores de Antonina ela ainda ocorre na desembocadura dos rios Nhundiaquara, mas antigamente ocorria baía adentro até o rio Faisqueira. Não é comercializada, mas é colhida para consumo próprio. Para este fim, no passado, sacolas cheias deste molusco foram carregadas até moradias situadas a distâncias relativamente grandes das margens da baía. Num terreno bem próximo a minha residência anterior, 5 km distante do rio mais próximo navegável de canoa (o rio Cachoeira), moradores antigos espalharam por anos uma grande quantidade de conchas desta espécie por todo parte. Segundo um dos meus vizinhos anteriores, Jandir da Veiga, num outro local igualmente distante do rio Cachoeira, um tatu tinha desenterrado conchas desta espécie no meio da floresta virgem. Segundo Jandir, a presença de algumas árvores frutíferas exóticas naquele local (próximo ao Rio do Ferro) demonstrou que no passado alguém havia residido naquele local. A estas observações posso acrescentar relatos de João José Bigarella que, no seu vasto levantamento dos sambaquis do litoral paranaense (Bigarella 1946, 1951a/b), encontrou E. mactroides espalhada na superfície de vários sambaquis em Antonina (sendo os sambaquis de Cacatu, da Ilha do Lessa e do Portinho; Bigarella 1951a) e julgou que esta espécie não faz parte do sambaqui primitivo. Segundo aquele autor, as valvas foram “abandonadas próximo às moradias ou, muitas vezes, sobre os sambaquis onde frequentemente os moradores fazem suas roçadas”.
Ainda segundo Jandir, a broóca vive em grupos adensados nos bancos lodosos e por ele não tem sido mais encontrada na proximidade de Antonina, nem no rio Faisqueira, como consequência de um método de pesca bastante predatório que descrita por ele assim: “O pescador bate com uma enxada nas broócas enterradas na lama, quebrando assim as suas valvas para que o cheiro da carne exposta atraia peixes, que, depois, são encurralados com uma rede de pesca.”.
Gofferjé 1950 não mencionou que é também comestível Tagelus plebeius, apesar desta espécie atualmente ser bem conhecida pelos pescadores de Paranaguá e por alguns de Antonina, como saramambí ou unha-de-velha, e às vezes colhida para consumo próprio. Gofferjé 1950 informa que esta espécie vive enterrada, “a cerca de uns 10 cm”.
Informações adicionais sobre as espécies mencionadas (distribuição, nomes vulgares adicionais, tamanho etc.) podem ser encontradas no Apêndice 1 da carta “Conchas marinhas no Paraná e norte de Santa Catarina”, distribuída em 13 de dezembro de 2013.
AGRADECIMENTOS
Estou muito grato…
– aos pescadores das cidades de Antonina, Paranaguá e Guaraqueçaba, aos funcionários das peixarias de Antonina e do mercado municipal de Paranaguá e aos funcionários das Colônias dos Pescadores Z-2 de Guaraqueçaba e Z-8 de Antonina, por todas as informações recebidas;
– aos amigos Jandir da Veiga e a sua esposa, dona Júlia, pelas preciosas informações sobre a broóca;
– aos amigos Eliane Beê Boldrini, Fernando Antonio Sedor e Sibelle Trevisan Disaró, pelo trabalho de correção desta carta.
(a) Na abrangente obra de Alvar & Alvar 1979 são incluídos desenhos de todos os tipos de cestaria encontrados na região e do seu uso. É interessante que não foi incluído o tipo de balaio usado para colher, limpar e transportar o bacucu. Isto sugere que a colheita deste molusco não foi presenciada pelos autores, talvez por esta atividade tiver sido pouco frequente na região pesquisada por estes autores durante o ano de 1974. Loyola e Silva & Nakamura 1975 (fig. 22) mostram uma foto deste tipo de balaio, tirada em frente do Mercado Municipal de Paranaguá no início dos anos setenta.
(b) Da obra de Rios (1994) podem ser inferidos como razão comprimento/altura das valvas os seguintes valores: 2,3-2,5 em Mytella charruana (“50 x 22 mm”; medidas na foto da Prancha 82/1165: 40 x 16 mm); 1,75-2,12 em M. guyanensis (“70 x 33 mm”; “ratio length/height: 7 to 4”; medidas na foto da Prancha 82/1166: 49 x 22 mm). Mais tecnicamente, as duas espécies se distinguem da seguinte forma: M. charruana tem a charneira denteada, o umbo subterminal e o músculo anterior retrator do bisso posionado atrás do umbo, enquanto M. guyanensis tem charneira edêntula, umbo não terminal e o referido músculo adiante do umbo (Boffi 1979).
(c) Já que é improvável que os pescadores de ambos os lados da divisa interestadual usem estes nomes num sentido oposto, acredito que Pereira et al. 2003 seguiram a nomenclatura popular da literatura e não aquela das pessoas que entrevistaram.
(d) Para Mytella charruana (M. falcata) “os teores letais de salinidade foram determinados em laboratório: 60% dos indivíduos morrem a salinidades abaixo de 2‰ e acima de 35‰, enquanto que as salinidades ótimas estão compreendidas entre 5 e 15‰.” (Boffi 1979).
(e) Escala da salinidade: 0,5-5 = oligohalino; 5-18 = mesohalino; 18-30 = polihalino; 30-35 = euhalino (fonte: Wikipedia). Agua doce tem salinidade < 0,5.
(f) Fonte: <www.mar.mil.br/dhn/chn/tabuas/index.htm>.
(g) Atualmente a mitilicultura de Perna perna também ocorre em vários pontos do litoral paranaense, geralmente associada à ostreicultura. É feita em boias dentro da baía.
GLOSSÁRIO
(A) fonte Ferreira1999:
mariscar: colher, apanhar (mariscos).
marisco: designação comum a todos os animais invertebrados marinhos que podem servir de alimento ao homem. Em sentido restrito, designa apenas os moluscos e crustáceos: lagosta, camarão, mexilhão, amêijoa, etc.
marisqueiro: que, ou aquele que marisca ou gosta de mariscar.
nafta: fração de destilação do petróleo, constituído por hidrocarbonetos de baixo ponto de ebulição.
(B) fonte Thomé et al. 2010:
bisso: conjunto de filamentos orgânicos elásticos, junto ao pé de alguns bivalves, para fixação temporária do animal a um substrato. Secretado pela glândula bissogênica como um líquido, que escorre por um sulco no pé e coagula ao contato com a água.
charneira: região da concha de bivalve, formada por espessa lâmina dorsal sob o umbo, onde podem existir formações salientes (dentes) e reentrâncias (fossetas), permitindo a articulação entre as valvas, como uma dobradiça.
umbo: projeção externa na região dorsal das valvas das conchas de bivalves situada diretamente acima da charneira.
REFERÊNCIAS
Alvar, J. & J. Alvar. 1979. Guaraqueçaba, mar e mato. UFPR, Curitiba. 2 Vol. (Vol. 1: pág. 1-207; Vol. 2: lâm. 1-233).
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Bigarella, J.J. 1951b. Contribuição ao estudo dos sambaquis no Estado do Paraná II, regiões adjacentes à baía de Guaratuba. Arq. Biol. Tecnol. 5/6: 293-314, estampas 58-63.
Boehs, G. 2000. Ecologia populacional, reprodução e contribuição em biomassa de Anomalocardia brasiliana (Gmelin, 1791) (Bivalvia: Veneridae) na Baía de Paranaguá, Paraná, Brasil. Thesis, Ph.D., Universidade Federal do Paraná (Setor de Ciências Biológicas), Curitiba. 201 pp.
Boffi, A.V. 1979. Moluscos brasileiros de interesse médico e econômico. HUCITEC, São Paulo. 182 pp.
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Boldrini, E.B. & E.V. de Paula. 2008. Programa CAD (Contaminantes, Assoreamento e Dragagem no Estuário de Paranaguá) e a recuperação de bacias hidrográficas para mitigar o processo de assoreamento. Em: Boldrini, E.B., C.R. Soares & E.V. de Paula (Org.). Dragagens portuários no Brasil: engenharia, tecnologia e meio ambiente. Associação de Defesa do Meio Ambiente e Desenvolvimento de Antonina (ADEMADAN) / Faculdades Integradas Espírita (UNIBEM) / Secretaria de Ciência e Tecnologia para Inclusão Social (MCT), Antonina, pp. 224-228.
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(André de Meijer, 15 de maio de 2013)