Carta 145. Pescar tainha na estrada
Quem percorre regularmente a rodovia não asfaltada para Guaraqueçaba, a PR-405, alguma vez deve ter visto pessoas pescando de anzol na ponte sobre o rio Serra Negra, principalmente na estação fria. Se você ficou curioso e parou para pedir qual espécie estavam pescando talvez tenha se surpreendido ao ouvir que se trata da tainha.Ao lado daquela ponte ocorre uma pequena mercearia (“Betel”), onde são vendidos artefatos para a pesca de anzol e cujo gentil proprietário, Sr. Leonel, está sempre disposto a ensinar ao curioso a técnica especial para pescar aquela espécie.
Ao perceber o conhecimento e a curiosidade científica de Leonel, logo lhe emprestei o livrinho A pesca artesanal da tainha no litoral do Estado do Paraná (Corrêa et al. 1993). Naquela pequena obra simpática, uma preciosidade na minha biblioteca, foi feito testemunha pelos autores de uma atividade que na época já estava em pleno processo de extinção, após ter sustentando por séculos as comunidades de pescadores do nosso litoral. A principal razão dessa extinção foi o fato da beira-mar paranaense, onde se localizavam essas comunidades, estar sendo totalmente ocupada por casas de veraneio e prédios de apartamentos. Hoje, aquela forma tradicional da pesca de tainha sobreviveu apenas nas ilhas e foi recentemente documentado para a Ilha do Mel (Regnier 2010).
Quando eu, meio ano depois do empréstimo do livrinho, voltei à Mercearia Betel, o Leonel mencionou que tinha gostado muito o conteúdo todo, mas que lamentou a total ausência de informações sobre a pesca de tainha nos rios de água doce.(a) Imediatamente vi um assunto interessante para uma nova circular, aproveitando a grande aula que recebi de Leonel.
Como introdução, vou lhes apresentar a própria tainha e a sua pesca, que é bem documentada para a beira-mar e a entrada da baía. Para esta finalidade, o já referido livro do amigo Marco Fábio Corrêa e colaboradores é uma fonte riquíssima:
As tainhas “(...) apresentam ampla distribuição geográfica e um comportamento migratório que ainda é muito pouco compreendido. Nos meses de verão parecem estar restritas às águas do Rio Grande do Sul. Nos meses de outono e inverno efetuam uma intensa migração em direção norte em busca de águas mais quentes onde parecem realizar a reprodução. Aparentemente a desova ocorre no oceano e, (...) o porquê da visita aos estuários, baías e rios, ainda são desconhecidos. (...). Alimentam-se de microorganismos que ingerem junto com areia ou lodo (...). Muitas vezes os microorganismos acumulam-se em manchas, na superfície da água, formando em alguns casos espuma. Este fato foi constatado pela maioria dos pescadores que referem-se frequentemente ao lodo, ingerido pela tainha, como limo.” (p. 18).
“No Paraná os primeiros exemplares surgem no final do mês de março, aumentando em número à medida que a temperatura diminui.” (p. 21).
“A presença dos grandes cardumes parece estar condicionada às condições meteorológicas adversas. Vento sul, chuvas fortes, temperaturas baixas e mar agitado garantem a aproximação dos cardumes da costa.” (p. 23).
“A proximidade da época dos cardumes de tainha provoca profundas modificações sociais nas comunidades pesqueiras e a influência é maior nas comunidades mais próximas do oceano. Inúmeras famílias passam a viver quase exclusivamente em função da aproximação dos cardumes.” (p. 28).
“A sociedade passa então a ser estruturada para a captura da espécie. Surgem os ‘espias’, membros da comunidade encarregados de permanecer o dia todo a observar as águas próximas da comunidade. Seus olhos, prévia e convenientemente treinados desde a adolescência percebem o agitar das águas quando da aproximação dos cardumes.” (p. 29-30).
“Uma vez detectada a presença da tainha, é dado o ‘aviso’ e a comunidade como um todo (...) inicia um ritual que parece apresentar suas origens nos tempos da colonização. A pesca apresenta características indígenas e dos colonizadores. São praticadas duas técnicas básicas. A pesca de ‘lance’ e de ‘cerco’. Na primeira os lanceadores, geralmente em número de quatro, saem para o mar para o lançamento da rede e efetuar o cerco do cardume. Os homens, mulheres, adolescentes e crianças aguardam na praia a conclusão da operação segurando uma das cordas da rede lançada. A pesca é concluída com a aproximação dos lanceadores que portam a outra ponta da rede. Então a comunidade como um todo realiza o recolhimento da rede.” (p. 34).
“As redes apresentam comprimento e tamanho de malha variável de acordo com os recursos financeiros de cada um. Antigamente eram feitas à mão pelos próprios pescadores. O fio, fabricado em algodão, era trançado com auxílio de agulhas especiais, feitas de madeira, e os pescadores possuíam técnicas apropriadas para aumentar a sua durabilidade.” (p. 36-37).
“Com a melhoria das vias de acesso às comunidades, surge a exploração imobiliária e com ela a necessidade de mão de obra na construção civil e a expulsão das comunidades das áreas de maior valor comercial. Estas áreas são justamente as situadas nas regiões próximas ou em frente do mar, das baías, dos estuários e das desembocaduras dos rios. Espaço tradicionalmente ocupado pelos membros das colônias. A dificuldade de acesso ao mar e ainda desvio de muitos membros das colônias para atividades mais rentáveis e regulares que a pesca, tem provocado o abandono e conseguinte extinção da tradição. Não deve ser esquecida a sensível diminuição do tamanho dos cardumes de tainha.” (p. 61); Corrêa et al. 1993.
Estes dados, publicados há vinte anos, continuam atuais, mas a pesquisa continuou e hoje dispomos de informações adicionais a respeito da biologia da espécie, como é mostrado na apresentação de Castello et al. 2011:
- a tainha no Sul e Sudeste do Brasil se trata de uma espécie só (Mugil liza) com diferenças fenotípicas e/ou populações pesqueiras;(b)
- é uma espécie catádroma: para desovar migra para águas de densidade maior do que aquelas do hábitat normal;(c
- a espécie é estuarina‐dependente. A!--more-->…