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O insustentável desamparo das comunidades tradicionais

Reportagem do site oficial do Parque Nacional de Saint-Hilaire/Lange sobre o flagrante de transporte de mais 12 mil folhas de guaricana mostra um dos resultados da mudança no modo de vida tradicional das comunidades rurais de Guaratuba.

O produto apreendido foi extraído por um pai e seus dois filhos menores que deixaram de viver na área afastada no limite entre os municípios de Guaratuba e Matinhos e apenas voltam para colher as folhas destinadas aos mercados das grandes cidades. De acordo com estudo na comunidade rural de Rasgadinho citado no texto, o que era um recurso natural importante, e que por isto era preservado, passa a ser um mero produto vendável.

Nos últimos anos, ocorreu um avanço significativo na criação de unidades de conservação e de políticas ambientais. Mas pouco se fez para proteger e atender as necessidades das comunidades tradicionais, na região e no país.

Leia a reportagem:

Fiscalização apreende folhas de guaricana cortadas dentro do PNSHL

Folhas de guaricana apreendidas, na Sede do PNSHL

No dia 13 de março, 50 “malas” (fardos) contendo aproximadamente 12.500 folhas de palmeira guaricana (Geonoma sp., popularmente conhecida como “palha”), foram apreendidas dentro do Parque Nacional de Saint-Hilaire/Lange (PNSHL) na região da estrada do Parati, na divisa entre os municípios de Matinhos e Guaratuba.

Apesar de não constarem da recente Lista Nacional de Espécies da Flora Ameaçadas de Extinção do Ministério do Meio Ambiente, duas das espécies de guaricana aparecem na última lista da flora ameaçada de extinção do Rio Grande do Sul, de dezembro de 2014. Os frutos e sementes de tais espécies têm grande importância alimentar para a fauna nativa (Galbiati et al., 2009).

Uma equipe do Parque Nacional de Saint-Hilaire/Lange e pesquisadores se deslocava para um riacho, quando se deparou com um caminhão suspeito parado na estrada do Parati, bloqueando a via. O condutor do veículo foi abordado e, durante vistoria na carroceria, foi flagrada a carga de folhas de guaricana em seu interior.

A equipe de fiscalização do Parque identificou quatro pessoas envolvidas na infração ambiental: além do proprietário do caminhão, que realizava o transporte da carga, estava presente o responsável pela extração da “palha”, acompanhado por dois filhos menores de idade, que o auxiliaram na extração e amarração das folhas de guaricana. Os envolvidos não residem nas redondezas, tendo feito uma longa viagem até a área específica do Parque de onde cortaram a “palha”.

O responsável pela extração da “palha” já havia sido autuado por ilícito idêntico em 2014, na mesma localidade. Ele informou à equipe de fiscalização que estava na região há semanas e havia sido responsável, com a ajuda de seus filhos, pela retirada de aproximadamente 35.000 folhas. Considerando que cada estipe (“pé” de palmeira guaricana) apresenta em média 8 a 15 folhas (mas nem todas nas condições ideais de corte), calcula-se que o montante de ramos tenha sido proveniente de aproximadamente 5.000 “pés” de palmeiras guaricana.

O proprietário do caminhão, por sua vez, era responsável por empreitar a mão de obra para obtenção do produto e por vendê-lo através de terceiros nos mercados de São Paulo e Rio de Janeiro, onde abasteceria floriculturas (coroas fúnebres, arranjos florais) e empresas que fazem coberturas rústicas (quiosques, bangalôs etc).

Fonte: dissertação de mestrado de Marília de Fátima Ceccon Valente (2009)

Foram lavrados dois autos de infração: um pelo transporte de produto de origem vegetal (folhas de guaricana), extraído no PARNA Saint-Hilaire/Lange sem autorização do ICMBio, e outro pela exploração comercial de subprodutos não madeireiros (folhas de guaricana) no PNSHL. Além disso, a equipe de fiscalização do Parque apreendeu o caminhão, bem como comunicou o Conselho Tutelar de Guaratuba sobre a participação dos adolescentes menores de idade no ilícito ambiental.

As “malas” de folhas de guaricana foram doadas à FUNAI, a fim de serem distribuídas entre as aldeias indígenas existentes no litoral do Paraná e regiões próximas – sob critérios da Coordenação Técnica Local da Funai em Paranaguá. Para os indígenas, as folhas serão utilizadas para cobrir as casas de reza, presentes em cada aldeia.

Aprofundando um pouco mais o tema

Além da guaricana, o “esquema” da extração comercial de produtos vegetais de florestas envolve ainda a extração/retirada de outros produtos em florestas de diversas regiões do sul do Brasil. Entre eles, estão: samambaias, musgos, cipó-preto, bromélias e guaricana. Muitos desses produtos são provavelmente retirados de diversas Unidades de Conservação de proteção integral e de áreas particulares – neste último caso, com ou sem autorização ou consentimento por parte dos proprietários. E, na maioria das vezes, sem o manejo adequado que garantiria a “produção” sustentável de tais produtos florestais.

Vários adolescentes menores de idade trabalham como extratores para ajudar os adultos da família. Não há qualquer relação formal trabalhista entre os envolvidos na cadeia de tais produtos. Apesar de muitos intermediários e o varejo terem bons lucros com a revenda destes produtos, tal “mercado” parece ser totalmente informal.

Folhas de guaricana no interior da carroceria do caminhão, cobertas por lírios-do-brejo

De acordo com VALENTE (2009), que fez um estudo na comunidade rural de Rasgadinho (município de Guaratuba – PR), “quando havia a dependência da comunidade deste recurso para sua subsistência, certamente havia uma outra relação de importância com a escassez do mesmo. Já com a mudança de paradigma que tornou a palha não mais um recurso de uso doméstico, mas agora uma matéria prima vendável e de alto valor para o nível socioeconômico da comunidade, ao invés de esta preocupação aumentar e a comunidade passar a valorizar mais ainda este produto, a não regulamentação da atividade faz com que a comunidade não se identifique como uma sociedade extrativista”.

Ainda, segundo a autora, “durante o período de estudo, observou-se um aumento na demanda pelo recurso. No primeiro ano da pequisa, segundo o relato dos extratores e do intermediário local, eram cortadas e vendidas de 70 a 80 mil palhas por semana para cada intermediário, divididas em dois pedidos, normalmente um na terça-feira e outro na sexta-feira, geralmente de 35 a 40 mil folhas cada. Estes intermediários, para juntar esta quantidade de folhas, também reuniam folhas de extratores de outras comunidades vizinhas, como Rasgado e Limeira. A partir do segundo ano da pesquisa, já não era mais necessário atender as quantidades solicitadas nos pedidos, pois, segundo os extratores, ‘quanto cortar, entrega’, ou seja, havia um escoamento contínuo de todo o recurso que fosse possível ser extraído. Em geral, eram cortadas de 1.000 a 1.500 folhas por trabalhador por dia. Portanto o extrator ganhava entre R$ 20,00 e R$ 25,00 reais por dia de extração de palha. Estimando-se que os 20 extratores registrados na comunidade do Rasgadinho trabalhem 5 dias por semana no corte da palha, retirando a quantidade mínima de 1.000 palhas por dia, isso resultaria em 20.000 folhas por dia, 100.000 folhas por semana e consequentemente 400.000 folhas por mês, somente na comunidade do Rasgadinho”.

Apesar de a Lei da Mata Atlântica trazer, em seu Art. 18, que “No Bioma Mata Atlântica, é livre a coleta de subprodutos florestais tais como frutos, folhas ou sementes, bem como as atividades de uso indireto…”, ela o faz considerando as seguintes ressalvas: “…desde que não coloquem em risco as espécies da fauna e flora, observando-se as limitações legais específicas e em particular as relativas ao acesso ao patrimônio genético, à proteção e ao acesso ao conhecimento tradicional associado e de biossegurança.”

Urge uma regulamentação estadual da Lei da Mata Atlântica para estes e outros produtos florestais não-madeiráveis, baseada em critérios técnicos-científicos (sociais, ambientais e econômicos) e amplamente discutida com os segmentos interessados. Isso permitiria o manejo sustentável de tais produtos florestais, possibilitando que os atores destas “redes” saíssem da informalidade e da ilegalidade. Muitas famílias do litoral do Paraná complementam suas rendas com a utilização desses produtos da floresta.

Os Parque Nacionais são Unidades de Conservação (UC) de Proteção Integral. É importante lembrar que a Lei do SNUC permite apenas o “uso indireto” dos atributos naturais nas UC de Proteção Integral, ou seja, “aquele que não envolve consumo, coleta, dano ou destruição dos recursos naturais”. A Lei traz um tratamento específico para o caso de Populações Tradicionais porventura residentes nas UC desta categoria.

No caso do Parque Nacional de Saint-Hilaire/Lange, e em especial na situação flagrada pela equipe de fiscalização, a extração de folhas de guaricana é proibida.

Folhas de guaricana doadas à Funai e entregues em uma aldeia indígena guarani
Texto e fotos: Parque Nacional de Saint-Hilaire/Lange – https://parnasainthilairelange.wordpress.com/2015/03/23/fiscalizacao-apreende-folhas-de-guaricana-cortadas-dentro-do-pnshl/

 

 

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