CCJ do Senado concede vista e adia votação da PEC das Praias

Após pedido de vista, a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) adiou a votação da proposta de emenda à Constituição (PEC 3/2022) que transfere a propriedade de terrenos de marinha, também chamada de PEC das Praias.
Pela proposta, particulares poderão adquirir essas áreas mediante pagamento, enquanto estados e municípios serão contemplados de forma gratuita. Não há uma nova data definida para que a matéria retorne à pauta da comissão.
Em maio, a PEC foi tema de audiência pública na CCJ, quando alguns convidados destacaram o que consideram ser os riscos de sua aprovação, especialmente relacionados à degradação do meio ambiente e ao surgimento de conflitos fundiários. Na época, e também nos últimos dias, campanhas nas redes sociais criticaram a proposta por permitir a privatização das praias.
O relator na CCJ, Flávio Bolsonaro (PL-RJ), deu parecer favorável e apresentou uma emenda para vencer as resistências, reforçando que as praias são bens públicos de uso comum do povo, de forma que o acesso ao mar por meio delas continua livre, exceto quando houver restrições por motivo de segurança nacional ou se determinado trecho estiver incluído em área protegida por legislação específica.
No entanto, um dos autores do pedido de vista, senador Rogério Carvalho (PT-SE), afirmou que o dispositivo “piora” o texto já que, segundo ele, deixaria sob responsabilidade dos municípios quando da elaboração dos seus planos diretores, o acesso ou não à praia.
— [O projeto] condiciona ao plano diretor o que pode ser ou que não pode ser de livre acesso. Portanto, ele piora o projeto de lei dele. Segundo, os ricos, que mais têm terreno de Marinha, guardando e fazendo especulação imobiliária, ficam livres de pagar o laudêmio e ficam livres de indenizar a União. Porque aqueles que têm um imóvel, aqueles que moram em cidades costeiras e que têm o imóvel, nós somos favoráveis a que sejam isentos e que receba este imóvel. Agora o setor empresarial que têm milhares de metros quadrados à beira mar, sem contar o momento em que vivemos de crise climática, ampliando a possibilidade de ocupação das áreas costeiras sem nenhum tipo de estudo.
Extinção dos terrenos da marinha
O Decreto-Lei 9.760, de 1946, considera terrenos de marinha aqueles localizados na faixa de terra que começa 33 metros depois da linha média da maré alta demarcada em 1831, ano em que os foros e laudêmios começaram a ser incluídos no Orçamento.
Tais terrenos podem ser concedidos para a ocupação de particulares de forma vitalícia ou temporária, mediante pagamento de taxas que variam conforme o regime de concessão e que são denominadas foro ou taxa de ocupação, conforme o caso. Ha ainda uma taxa cobrada quando ocorre a transferência de domínio de um particular para outro. Os tributos serão extintas a partir da promulgação da emenda constitucional oriunda da PEC.
De acordo com o Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos, existem aproximadamente 565 mil terrenos de marinha utilizados por terceiros.
Conforme a PEC 3/2022, a União transferirá todas as terras de marinha, exceto aquelas usadas para serviço público federal, como as que contêm instalação portuárias, as abrangidas por unidades ambientais federais e as que não estiverem ocupadas.
O instituto de terreno de marinha também é extinto pela PEC com a revogação do inciso VII do artigo 20 da Constituição, que enumera os bens da União.
Estados e municípios receberão gratuitamente os terrenos de marinha onde estiverem instalados serviços públicos estaduais e municipais sob concessão ou permissão. Também será gratuita a transferência onde houver habitações de interesse social, como vilas de pescadores.
Pela PEC, os ocupantes particulares deverão pagar pela transferência. Aqueles que estiverem regularmente inscritos junto ao órgão de gestão do patrimônio da União poderão deduzir do valor a pagar aquilo que já tiver sido pago a título de taxa de ocupação ou de foro nos últimos cinco anos, atualizado pela taxa Selic.
O ocupante que não estiver inscrito poderá comprar o terreno se estiver ocupando o local há pelo menos cinco anos antes da publicação da emenda e comprovar boa-fé.
As áreas não ocupadas poderão vir a ser transferidas para os municípios se forem requisitadas para expansão do perímetro urbano, desde que atendidos os requisitos exigidos pelo Estatuto da Cidade e demais normas sobre planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano.
Especialistas apontam riscos

Durante a audiência pública, em 27 de maio, a coordenadora-geral do Departamento de Oceano e Gestão Costeira do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marinez Eymael Garcia Scherer, informou que a área de segurança nos terrenos de marinha em outros países costuma ser maior que a adotada no Brasil (33 metros). Ela citou o exemplo de Portugal (50 metros), Suécia (100 a 300 metros), Uruguai (150 a 250 metros) e Argentina (150 metros). A PEC pode significar, na visão de Marinez, um risco de ônus para toda a sociedade e de perdas na qualidade de vida.
Marinez Scherer também alertou que o nível do mar vem subindo nos últimos anos. Esse aumento, ressaltou, avança exatamente sobre a área de segurança e dos terrenos de marinha. Ela disse que essas áreas, que normalmente têm manguezais, restingas e falésias, são consideradas áreas de preservação ambiental permanentes. Segundo Marinez, se houver perdas nessas estruturas naturais, haverá perdas de bem-estar humano e perdas econômicas. Ela citou o exemplo recente do Rio Grande do Sul e disse que as perdas econômicas atingem toda a população.
— Não é à toa que essas áreas são consideradas áreas de conservação permanente. São assim porque são importantes para a segurança humana e para o bem-estar humano — registrou.
Soberania e equilíbrio ambiental
A secretária-adjunta da Secretaria de Gestão do Patrimônio da União no Ministério da Gestão e da Inovação dos Serviços Públicos, Carolina Gabas Stuchi, afirmou que a PEC é de interesse de toda a população brasileira. Segundo Carolina Stuchi, o domínio da União sobre a faixa da costa marítima é essencial para a soberania nacional e para o equilíbrio do meio ambiente. Ela ainda disse que, se a PEC fosse aprovada hoje, haveria “um caos administrativo”, porque a estimativa é que existam cerca de 3 milhões de imóveis não registrados ocupando essa faixa.
De acordo com Carolina, a proposta extingue a faixa de segurança e permite a transferência do domínio pleno, o que poderia agravar a questão fundiária relacionada a povos tradicionais. Ela acrescentou que outros países estão recomprando as áreas de praia que haviam sido privatizadas tempos atrás. Para a secretária, a PEC ainda pode ser aperfeiçoada. Ela ainda disse que leis mais simples já podem auxiliar a resolver os problemas relacionados aos terrenos de marinha.
— A PEC favorece a ocupação desordenada, ameaçando os ecossistemas, tornando esses terrenos mais vulneráveis a eventos climáticos extremos. A proposta ainda permite a privatização e cercamento das praias, trazendo impacto no turismo e na indústria de pesca — alertou Carolina.
Diretor do Departamento de Assuntos do Conselho de Defesa Nacional do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, Bruno de Oliveira, opinou de forma contrária à PEC. Ele disse que a mudança pode chocar com princípios de soberania nacional, justiça social e pontos importantes da preservação do meio ambiente. Para Oliveira, eventuais ajustes podem ser feitos por meio de projetos de lei.
Pescadores e pescadoras

Na visão de Ana Ilda Pavão, representante do Movimento dos Pescadores e Pescadoras Artesanais, a PEC é um retrocesso. Ela disse que as leis precisam se atentar à realidade local. Segundo Ana Pavão, o Senado precisa ouvir mais aqueles que são diretamente atingidos pela mudança legislativa. Ela abriu uma bandeira do movimento e disse a PEC “não tem nada a ver” com os pescadores, que já sofrem com o assoreamento e com o desmatamento. Conforme informou Ana Pavão, já há várias áreas alagadas no Maranhão, impedindo a permanência de povos tradicionais.
— O teor dessa PEC, no fundo, é a urbanização das orlas, são os grandes empreendimentos. Quem vai lucrar? Não somos nós. Nós só vamos perder. Essa PEC precisa ser revista. Muito tem se falado aqui, mas se esqueceram de falar da vida — registrou.
Portos
De acordo com a gerente técnica da Associação dos Terminais Portuários Privados (ATP), Ana Paula Franco, todo terminal usa parte do terreno de marinha, com a devida autorização do poder público. Por isso o interesse do setor na PEC. Ela disse que a ATP é desfavorável à proposta, por trazer insegurança jurídica — comprometendo os negócios dos terminais. Ana Paula lembrou que a construção de um porto exige um longo tempo, sua operação demanda muitos investimentos e alertou que essas mudanças legais podem judicializar a questão.
Na mesma linha, o diretor-presidente do Instituto de Terras do Estado do Amapá, Reneval Tupinambá Conceição Júnior, classificou a proposta como temerária e pediu mais debate sobre o tema. Ele disse que em seu estado há uma certa confusão entre terrenos urbanos e rurais nas áreas classificadas como terrenos de marinha. Reneval Júnior ainda pediu mais envolvimento do governo federal, ao cobrar mais valorização para os setores que trabalham com regularização de patrimônio.
Com informações da Agência Senado