O que o Brasil precisa é que Requião, o imprescindível, não mude
Artigo de Samuel Gomes
27 de março de 2024, dois anos após filiar-se ao PT, Requião deixa o partido. Em entrevista à Associação dos Engenheiros da Petrobrás, a valiosa AEPET, Requião explica para os petroleiros e para o Brasil as razões pelas quais persistirá na luta nacionalista na defesa do desenvolvimento soberano do Brasil por outro caminho partidário, ainda indefinido.
Ouça a curta e objetiva entrevista e faça você mesmo o seu juízo. É muito provável que você veja o mesmo Requião, com as mesmas bandeiras que empunhou durante toda a sua vida. Requião é uma daquelas raridades que Brecht homenageou no poema Os que lutam:
Há os que lutam um dia; e por isso são muito bons;
Há os que lutam muitos dias; e por isso são muito bons;
Há aqueles que lutam anos; e por isso são melhores ainda;
Porém, há aqueles que lutam toda a vida; esses são os imprescindíveis.
Requião é um político que vem de longe, como dizia Brizola. Viveu momentos de isolamento e, como os grandes generais, logo depois sorveu o vinho doce da vitória sobre as adversidades que pareciam invencíveis. Requião “morreu” muitas vezes para poder ver sepultados muitos dos seus detratores e inimigos. A maior e mais recente detratora de Requião – e responsável por ter-lhe sido subtraída a eleição certa para o Senado – foi a moribunda, mas ainda insepulta, Lava Jato. O Disparada apontou a perfídia e denunciou o crime em inspirado artigo de Jorge Bahia, Por que a Lava Jato agiu nas sombras para tirar Requião do Senado?
O artigo entrega mais do que o título promete. Diz não apenas o porquê, mas o como. E o como foi a insidiosa e ardilosa estratégia tipicamente lavajatista de divulgar uma suposta ligação de Requião com o esquema de corrupção que comandou o pedágio no Paraná. Logo Requião, cuja luta contra a exploração do pedágio foi tenaz e insana, na política e nos tribunais. Mas o pedágio escorchante venceu nos tribunais e o governo federal da época não estendeu a mão ao insurrecto governador. Jorge Bahia vai ao ponto:
“A Lava Jato não apontou um único fato que legitimasse o anátema a Requião. Não indicou um único ato de corrupção do governo Requião, notório combatente contra a exploração das pedageiras. Mas o descarado consórcio incestuoso entre a Lava Jato e a mídia era a lei naqueles tempos bicudos. A imprensa era o departamento de comunicação social da Lava Jato. A Lava Jato não precisava fundamentar nada. O que Moro e Deltan falassem estava falado. E virava manchete na imprensa, o que mostra que as fake news não são uma invenção do ativismo bolsonarista nas redes sociais, que apenas embruteceu o esquema picareta de uma mídia associada ao tsunami udenista do lavajatismo. Não foi apenas a indústria nacional e centenas de milhares de empregos o que a Lava Jato destruiu. Acabou também com o que ainda havia de ainda decente e sério imprensa nacional.”
Daí a sensibilidade do tema do pedágio para Requião. Isso fica claro na entrevista que o destemido nacionalista concedeu à Associação dos Engenheiros da Petrobras. Mas foi só o pedágio a separar Requião de Lula. Requião diz ter sido abandonado na luta solitária contra a privatização da companhia de energia elétrica (Copel), a ameaça de privatização da companhia de águas e saneamento (Sanepar) e na defesa do caráter público do Porto de Paranaguá.
Requião é de luta. Quem viveu os seus três governos conhece as bandeiras de cor. Luta vitoriosa pela reestatização da Estrada de Ferro Paraná Oeste – Ferroeste, que eu tive a honra de comandar. Luta contra os transgênicos, contra a privatização da companhia de águas (Sanepar), do Porto de Paranaguá, luta para que a TV do Estado cumprisse sua missão de educar politicamente o povo, transmitindo ao vivo as reuniões semanais do secretariado, presidentes de companhias do Estado, diretores gerais, nas quais a conversa era franca e reta, ao estilo Requião.
O governo federal no segundo governo Requião era do presidente Lula. Requião foi um governador leal. E, por isso, profundamente crítico. As críticas de então são as mesmas de hoje: “It’s the economy, stupid!”
Requião era e é amigo de Lula. Amigo é quem diz o que pensa para o bem do amigo. Requião é amigo de Lula da mesma maneira que Aristóteles era amigo de Platão: “Sou amigo de Platão, porém mais amigo da verdade.” Isso não significa que Aristóteles tivesse acesso mais privilegiado à verdade que Platão, mas que ele não deixaria de perseguir a verdade para não contrariar o amigo.
Se alguém tem dúvida da lealdade de Requião a Lula, é só ouvir ou ler o memorável discurso que senador paranaense proferiu no Plenário do Senado quando Lula estava por baixo e muitos esquivavam-se da defesa aberta do líder petista: “Requião diz que Lula é vítima do ódio da elite do país”. Era 17 de abril de 2018, dez dias depois de Lula ter sido lançado à masmorra lavajatista de Curitiba.
Ou releiam o discurso que Requião em 2019, “Lula é culpado!”, no qual exercendo com maestria a fina arte da ironia, descreve as muitas “culpas” de Lula, para concluir:
São por essas culpas que Lula foi condenado e é mantido preso. São as culpas de Mandela, de Spartacus, de Frei Caneca, de Zumbi dos Palmares, do Conselheiro. O tal do triplex, cuja propriedade permanece em um incômodo e escandaloso limbo? Os pedalinhos dos netos em um sítio em Atibaia?
Ora, vão à merda!
Lula sabe disso. E sabe o que Requião representa para o Brasil. Quatro anos depois, em 7 de maio de 2022, no lançamento de sua pré-candidatura com Alckmin, em São Paulo, Lula disse o que a presença de Requião no seu palanque simbolizava:
Eu quero outra vez agradecer a vocês, a cada um de vocês. Quando eu vi o Requião aqui e vi toda a briga do Requião em defesa da soberania nacional, eu queria te dizer, companheiro Requião, que você é um jovem de 81 anos de idade e, pelo que eu te conheço, você vai ter energia o suficiente para a gente comemorar junto na praça pública a recuperação da soberania brasileira, a recuperação da industrialização desse país, a recuperação da liberdade de cada um ser o que quiser e viver como quiser, e cada um ser democrático.
Ao contrário de Ciro e outros valorosos companheiros que o guerreiro paranaense tem em alta consideração, Requião alimenta uma visão realista, mas generosa, de Lula. Ele sabe que na vida e na política, como ensinou o filósofo espanhol Ortega y Gasset, o homem é o homem e suas circunstâncias.
As circunstâncias levaram Requião e Lula ao mesmo palanque em 2022. O palanque no qual Lula evocava a força e a experiência de Requião para sinalizar que o seu terceiro governo seria marcado pela defesa da soberania e pela reindustrialização do Brasil. Requião viria a concorrer ao seu quarto mandato como governador do Paraná em 2022 pelo PT, depois de toda a vida num único partido, o MDB, que ajudara a fundar e de cujo manifesto histórico, Esperança e Mudança, fora um dos autores.
As circunstâncias mudaram para Lula, segundo enxerga Requião. “Y es que en este mundo traidor / nada hay verdad ni mentira / todo es según el color del cristal con que se mira”, disse o poeta. Se em 2022 a lente pela qual Lula e Requião viam as coisas neste mundo cambiante parecia ser a mesma ou semelhante, hoje já não é. E o caminho natural é a separação – momentânea? – para que o Brasil não perca o que Requião tem de melhor, a sua tenacidade na defesa do desenvolvimento soberano do Brasil com justiça social.
Nestes tempos trevosos, o Brasil precisa mais que nunca de políticos de coragem. Coragem que Requião demonstrou em toda a sua vida e que ficou notória para o grande público no histórico discurso contra o golpe institucional contra Dilma. O tonitruante paranaense repetiu as palavras do mineiro Tancredo Neves na fatídica noite de 31 de março de 1964: “Canalhas! Canalhas!”. E depois, mesmo sendo Temer do seu partido, o MDB, Requião fez-lhe oposição feroz, ao denunciar o desmonte das garantias sociais e trabalhistas.
São tempos encrespados o que vivemos. Assoma-se agora à mente uma dupla memória; a de uma pérola de Fernando Pessoa e de uma lição que a vida me ensinou. A lição, a aprendi aos 19 anos a bordo de um veleiro no coração de uma tempestade em alto mar a caminho da África. O pequeno veleiro era uma rolha indefesa ao sabor das vagas, da chuva, dos raios e dos trovões. Eu, o jovem marinheiro que fora destacado pelo capitão para amarrar-me ao mastro e baixar uma vela rasgada pela furiosa ventania. Cumpri a missão sem ter tempo para ter medo. Antes – não estranhe! – fui tomado de um sentimento de êxtase, júbilo e de uma coragem assombrosa, como se a força da tempestade irrompesse adentro do meu jovem espírito de descendente de velhos navegadores açorianos que aportaram no Rio Grande do Sul em 1730. Assim é a vida. Às vezes não nos é dado fazer outra coisa que não o que há de ser feito, como diz Fernando Pessoa em “Palavras de Pórtico” e como canta em verso o também português Sidónio Muralha, em “Roteiro”, o poema predileto de Requião:
Parar. Parar não paro.
Esquecer. Esquecer não esqueço.
Se caráter custa caro
pago o preço.
Pago embora seja raro.
mas homem não tem avesso
e o peso da pedra eu comparo
à força do arremesso.
Um rio, só se for claro.
Correr sim, mas sem tropeço.
Mas se tropeçar não paro
– não paro nem mereço.
E que ninguém me dê amparo
nem me pergunte se padeço.
Não sou nem serei avaro
– se caráter custa caro
pago o preço.
É o homem na missão. Requião tem o sentido da missão, que vem dos seus antepassados nordestinos e da força de sua própria biografia. Missão e fé. A fé, diz Fernando Pessoa, é o instinto da ação. Requião é um homem de ação. Logo, um realista. Coisa bem diferente de um pragmático daqueles que vicejam rastejantes nos salões do poder a esperar algumas migalhas douradas. Nos atos destemidos de Requião é justo reconhecer aquela grandeza, tão costumeiramente incompreendida, eternizada por Fernando Pessoa, no Livro do Desassossego:
“A única atitude digna de um homem superior é o persistir tenaz de uma atividade que se reconhece inútil, o hábito de uma disciplina que sabe estéril, e o uso de normas de pensamento filosófico e metafísico cuja importância se sente nula.”
Requião, que milhões de brasileiros querem ainda ver cumprindo sua mais alta missão perante a Pátria, é o pescador Santiago, protagonista de “O velho e mar”, de Hemingway, que, mesmo depois de dias e dias sem qualquer perspectiva de encontrar o grande peixe com que sonhava, exercia diligentemente o seu cotidiano ofício:
“Ele cuidadosamente preparou suas linhas e seus anzóis, os vistoriou cuidadosamente e disse para si mesmo que tinha que estar preparado para a oportunidade. Agora estava tudo preparado. Ele pensou em tudo o que havia a fazer. Ele também sabia o que devia fazer. Mas, às vezes, um homem espera por toda uma vida por essa oportunidade. E então, quando ela vem, ele não consegue fazer uso dela.”
É isso. Todo o mais a Deus pertence. Deus, como sabemos, é brasileiro. E também o é Requião.
Alea jacta est.
Samuel Gomes é advogado e professor, mestre em Filosofia do Direito, Consultor em Poder Legislativo, Relações Governamentais e Negócios Internacionais.