Correio do Litoral
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Carta 150. Na pista de pouso de Guaraqueçaba

Examinando o mapa topográfico do IBGE 1992, tive a surpresa de encontrar, logo ao leste da cidade de Guaraqueçaba, um símbolo de aviãozinho. Significa, segundo a legenda,campo de emergência. Chequei a informação no mapa topográfico mais detalhado da DSG 2002, onde reaparece como “Campo de Pouso”. Resolvi ir conhecer o lugar em campo. Chega-se ali seguindo a Rua Superagui até o fim e continuando na Rua Laerte Weisheimer, atravessando a ponte. A cem metros depois da curva comece o “campo” indicado naqueles mapas. Consiste de uma faixa reta de areia nua branca, de 700 metros de comprimento e 25 metros de largura média. Por causa do formato linear a palavra ‘pistaé mais apropriada do que ‘campo’. No Google Earth, a pista é muito conspícua e as suas coordenados, no meio do trecho, são 25º18’10”S, 48º18’36”O. Tanto o mapa da DSG 2002, quanto o Google Earth mostram que a pista desce gradualmente em direção ao rio Cerco Grande, que passa a sudoeste.

Segundo pessoas que residem na margem deste terreno, a pista tem sido usada por teco-tecos, mas nos últimos três anos nenhum destes aviõezinhos teria pousado ou decolado ali. Nas minhas visitas ao local testemunhei que esta pista não pavimentada é ocasionalmente transitada por algum carro ou caminhão leve, os últimos para jogar, na vegetação ao fim da pista, restos orgânicos, principalmente de palmito provenientes da fábrica local do produto. Uma vez por ano, na festa do aniversário do município (11 de março), a pista é usada para uma corrida de cavalos.

Este uso ocasional por automóveis e equinos é a razão da pista não ter sido retomado pela vegetação. Na sua margem há várias espécies de ciperáceas e gramíneas que avançam sobre a areia nua por meio de estolhos, ou através de mudas surgidas de sementes. São particularmente chamativos e lindos os longos estolhos superficiais da pteridófita Lycopodiella cernua, às vezes chamado de pinheirinho-do-campo. Poucas outras plantas pioneiras fazem parte deste trabalho de ocupação. São, principalmente, acariçoba (Hydrocotyle leucocephala), uns poucos indivíduos da campainha (Ipomoea spp.) e, somente na parte final da pista, anil-trepador (Cissus verticillata).

A razão que resolvi dedicar uma carta ao local é que a pista foi aberta no meio de uma área de restinga. Não conheço outro lugar na parte continental do município de Guaraqueçaba, onde o acesso à restinga foi tão facilitado e esteja tão convidativo quanto aqui. Caminhando ao longo da sua margem, você encontrará em abundância várias espécies de plantas típicas da restinga herbácea úmida e dificilmente encontradas em outros locais de fácil acesso dentro do município. São particularmente as seguintes:

A) nos trechos que alagam na chuva:

Drosera capillaris

É chamada de ‘orvalhinha’ em Santa Catarina (Santos 1980). Via com flores e sementes maduras em outubro e novembro.

Planta insetívora. Folhas rosuladas (roseta de 15-27 mm de diâmetro), prostradas; lâmina 4-5 x 4 mm, obovoide, coberta de tricomas glandulares vermelho-amarronzadas, de 2-3 mm de compr.; pecíolo 2-3 mm de compr., glabro; inflorescência com 4-8 flores, 50-120 mm de altura incluindo escapo; escapo reto, glabro; pétalas rosa-pálidas; sépalas verdes, glabras; sementes 0,52 x 0,22-0,25 mm, levemente obcônicas, densamente papilosas, com 3-4 estrias longitudinais em vista lateral.

A espécie foi identificada com Santos 1980, Silva 1996 e Silva & Giulietti 1997. No Sul do Brasil, é restrita à restinga herbácea (Santos 1980). Tem distribuição disjunta no Brasil: ocorre no litoral, de RS a RJ e reaparece em Amapá, no extremo norte do país, mas também em alguns locais na Amazônia distante do litoral (JBR 2010). É interessante que a única coleta de Amapá também procede de um campo de aviação (Silva & Giulietti 1997).

Eleocharis sp.

Foi encontrada madura emoutubro e novembro.

Planta cespitosa, ocorrendo em agregações extensas. Caule 40-100 (compr.) x 0,25-0,4 (espessura) mm, anguloso, sólido, liso; inflorescência em espigueta solitária terminal, 3-4 x 0,7-1 mm, ovado-aguda, pálida, contendo 3-4 flores; glumas 1,6-1,8 x 1,1 mm, ovadas, carenadas, verdes na carena, bordas não escariosas; perianto com ±5 cerdas, as cerdas cobertas por células retrorsas agudas; estigma 3-fido; aquênio 0,8 x 0,5 mm, obovoide, liso, verde-pálido, com rostro piramidal, 0,35 (largura) x 0,2 (compr.) mm; anteras 0,62 x 0,01 mm.

Usando Barros 1960 e Muniz 2001, não consegui identificar a espécie.

Lindernia rotundifolia

Sinônimo: L. microcalyx. É chamada de ‘papa-terra’ em Santa Catarina (Ichaso & Barroso 1970). Foi encontrada florida em outubro.

Planta delicada, ocorrendo em agregações extensas. Folhas opostas, 0,6 x 0,6 mm, ovais, sésseis; flores solitárias, cálice 5-partido, glanduloso-piloso; corola 1,2 cm de compr., bilabiada com lábio superior arredondado e o inferior trilobado, em parte branco, em parte azulacinzentado; estames 2, surgindo do tubo da corola, filetes sem apêndices, anteras com ambos os lóculos férteis, divergentes; estaminódios 2, claviformes, azulacinzentados, surgindo da fauce da corola.

Até recentemente, o gênero Lindernia era incluído na Scrophulariaceae (Ichaso & Barroso 1970, Silvestre 1981, Souza & Giulietti 1990), mas atualmente está na Linderniaceae, uma família segregada da anterior (Souza & Lorenzi 2008).

Duas espécies bem distintas de musgos do gênero Sphagnum:

– sp. A (seçaõ Cuspidata): planta inteiramente verde-amarelada;

– sp. B (seção Acutifolia): planta de aspecto marrom-alaranjado, devido ao caule vermelhoescuro e com folhas bem menores do que a anterior.

A sua identificação em nível de espécie é tarefa para especialistas. Do gênero Sphagnum, no Paraná, são conhecidas nada menos que 22 espécies! (JBR 2010).

(B) nos trechos que não alagam:

– o musgo Polytrichum sp., que forma tapetes extensos e abertos e cujas plantas rígidas têm folhas apicais atingindo 12 mm de comprimento.

– a hepática Telaranea nematodes, que forma tapetes extensos e densos, mas rasos, fixando e cobrindo totalmente a areia nua.

Já que a terra arenosa da restinga, quando termina de chover, seca rapidamente na superfície, o melhor momento para encontrar cogumelos terrestres ali é durante, ou logo após uma chuva prolongada. Assim, resolvi visitar o local em pleno dia de chuva (23 de maio último), abaixo do guarda-chuva, na esperança de ver cogumelos entre as plantas listadas acima. De fato, num dado local, encontrei um grupo de cogumelos pertencentes a uma espécie de Entoloma já conhecida de outras localidades,(b) inclusive da restinga da Ilha do Mel, onde a encontrei (junho de 1990) crescendo tanto entre Sphagnum sp. quanto entre Telaranea nematodes. Aqui, na margem da pista de pouso de Guaraqueçaba, este cogumelo surgiu a partir de folhas em decomposição, mas tanto Sphagnum quanto Telaranea estavam próximos.

Caminhar neste local durante a chuva se mostrou uma experiência espetacular, tamanha a variedade de tonalidades de verde em tapetes de musgos encharcados e expandidos!

Em minha opinião, esta pista de pouso poderia ser aproveitada pelos professores de Guaraqueçaba para um agradável, instrutiva e saudável aula de campo com os alunos, associando as ciencias” à educação física. Mas antes disso seria recomendável à prefeitura, a alguma ONG, ou às próprias escolas, organizarem um trabalho de limpeza, pois numa trilha lateral da pista, dentro da floresta, foram deixadas carcaças de carros velhos!

Aliás, ao visitarem este local, não esqueçam de trazer o seu documento, pois os guardiões do terreno, sempre de plantão, são bem brabos. Logo na sua chegada escutarão de longe o guardião principal, bradando: “Quero-quero a sua identidade!”. Logo depois chegará outro, o tal de ‘Bentevizinho, sempre fardado de penacho vermelho. Como este sabe se impor também! Chegando ao fim da pista você ainda terá de enfrentar o seo João Teneném, sempre revoltado ao perceber que os outros guardiões lhe deixaram passar. Mas tudo isto não se deve levar a mal: eles estão apenas cumprindo o seu dever, com muita garra e bico.

(a) Os nomes destes fungos foram listados na “Carta 144. Alguns registros não recentes de líquens, hepáticas e musgos do Paraná”, de 27 de abril de 2014.

(b) Esta espécie de Entoloma pertence ao subgênero Nolanea, seção Endochromonema, subseção Endochromonema, um grupo taxonômico notoriamente complexo.

REFERÊNCIAS

Acevedo-Rodriguez, P. & M.T. Strong. 2005. Monocotyledons and Gymnosperms of Puerto Rico and the Virgin Islands. Contr. United States National Herb. 52: 1-415.

Barros, M. 1960. Las Ciperáceas del Estado de Santa Catalina. Sellowia 12: 181-450.

DSG (Diretoria de Serviço Geográfico, Ministério da Defesa – Exército Brasileiro). 2002. Folha “Guaraqueçaba”. (SG-22-X-D-III-3-NE / MI-2844-3-NE). Ministério da Defesa – Exército Brasileiro, Secretaria de Tecnologia da Informação, Diretoria de Serviço Geográfico. 1 mapa. 62 x 76 cm. Escala 1:25.000.

IBGE (Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). 1992. Folha “Guaraqueçaba”. (SG.22-X-D-III-3 / MI-2844-3). IBGE. 1 mapa. 50 x 50 cm. Escala 1:50.000.

Ichaso, C.L.F. & G.M. Barroso. 1970. Escrofulariáceas. Flora Ilustrada Catarinense, I Parte. As plantas. Fascículo: ESCR. 114 pp.

JBR (Jardim Botânico do Rio de Janeiro). 2010. Catálogo de plantas e fungos do Brasil. Andrea Jakobsson Estúdio : Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. 1699 pp. (2 Vol.).

Muniz, C. 2001. Flora fanerogâmica da Ilha de Cardoso (São Paulo, Brasil). Cyperaceae. Flora fanerogâmica da Ilha de Cardoso (São Paulo) 8: 47-90.

Santos, E. 1980. Droseráceas. Flora Ilustrada Catarinense, I Parte. As plantas. Fascículo: DROS. 23 pp.

Silva, T.R.dos S. 1996. Flora fanerogâmica da Ilha do Cardoso (São Paulo, Brasil). Droseraceae. Flora fanerogâmica da Ilha do Cardoso (São Paulo, Brasil) 4: 53-55.

Silva, T.R.dos S. & A.M. Giulietti. 1997. Levantamento das Droseraceae do Brasil. Bol. Bot. Univ. São Paulo 16: 75-105.

Silvestre, M.S.F. 1981. Flora fanerogámica da Reserva do Parque Estadual das Fontes do Ipiranga (São Paulo, Brasil). 148 – Scrophulariaceae. Hoehnea 9: 115-117.

Souza, V.C. & A.M. Giulietti. 1990. Scrophulariaceae de Pernambuco. Bol. Bot. Univ. São Paulo 12: 185-209.

Souza, V.C. & H. Lorenzi. 2008. Botânica sistemática: guia ilustrado para identificação das famílias de Fanerógamas nativas e exóticas no Brasil, baseado em APG II, Ed. 2. Edit. Plantarum, Nova Odessa. 704 pp.

(André de Meijer, 28 de maio de 2014)

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