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Vê se pode: Silvana Souza quer uma escola emancipadora

“Muito além do jardim/Há um mundo muito grande/Para mim. Muito além da TV/Há um mundo de verdade/Para Você” – Muito Além (Ira)

Viviane Campos Zé Beto Maciel

Para início de conversa, a professora Silvana Souza usa a metáfora de Rousseau – uma corrida do anão com um gigante – para explicar as diferenças dos percalços de um estudante pobre e da caminhada de um estudante rico na educação formal brasileira. Esse é o ponto de partida que ela traz para o debate importante sobre democracia e educação nesses tempos bicudos da propalada reforma do ensino médio e nem vamos falar tão alto assim, da escola sem partido – uma das bandeiras fake da direita brasileira.

Silvana Souza é professora da Unioeste, mestre, doutora e phd e se dedica ao estudo da educação e seus impactos. Não são estudos obtusos que tratam a educação separada da sociedade e como uns dos poucos meios de formar uma pessoa com capacidade crítica e agente da sua própria história. A professora vai além e cita uma série de referências de autores e pensadores sobre o tema, o que requer uma leitura mais acurada. 

Em “Educação para a Emancipação ou para Alienação?”, com 117 páginas editado pela Nova Práxis Editorial, a professora deslinda o processo educacional brasileiro, desde a época de Vargas, da gestão e arquitetura das escolas, e conceitua da educação brasileira – escola nova, tecnicista – e ainda dá uma lapadas da escola participativa – uma das condições para se falar em “emancipação”.

Na leitura do livro, uma coletânea de artigos com citações e notas de rodapé, Silvana Souza faz uma abordagem marxista – cruz em credo para alguns – deste histórico e denota ao capitalismo o uso sistemático da força do trabalho, e a educação por extensão, para acúmulo de riquezas para alguns poucos, cada vez mais poucos. O que diria Karl Marx com o rentismo e a necropolítica, onde quem não produz na atual economia das big techs está condenado à morte sem acesso aos serviços básicos, entre eles, a educação e a saúde? 

A acumulação de riquezas, na avaliação da professora, é hoje bem maior e mantém o foco do sistema – os grandes grupos são transnacionais – nas diversas metamorfoses que alteraram significativamente as formas e o próprio trabalho – mais mecanizado e tecnológico. As flexibilizações e o falso conceito de empreendedorismo culminaram na precarização do trabalho. É uma condição imposta por um sistema que exclui inúmeros direitos relacionados à dignidade humana.

O que a educação tem a ver com isso. Quase tudo. Segundo Silvana, a emancipação da sociedade pode também ser conquistada através da educação pública. No entanto, não foi e não é prioridade pois empodera e desperta a cidadania crítica, conceitos fora do interesse e que atrapalham a manutenção do modelo econômico vigente.

Na teoria, a educação pública no Brasil é uma ponte para a liberdade do ser humano. Na prática, essa educação enfrenta inúmeras barreiras a ponto de limitar-se ao ato de transferir conhecimento. Paulo Freire nos ensina que este modelo traz o risco de estagnar a transformação tanto no plano do desenvolvimento intelectual como também incapaz de mobilizar grupos e ideias em prol de um bem comum.

Se tratando da educação emancipadora, Rousseau discorre acerca da educação atual e desde sempre como uma atenuante da desigualdade, defende uma educação para todos, em um sistema único que iguala a formação ampla, com mesmo padrão de atendimento e de qualidade independente de classe social. 

Em defesa desta educação ampliada para todos, em 1932 o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova traz os primeiros métodos sistematizados da educação como bem universal, proibindo até a criação de escolas particulares, o que não era propício no momento mais por motivos econômicos do que políticos e ou ideológicos. O país tinha uma massa de analfabetos e iletrados, quase que independente da classe social.

Se constata que com o viés tecnicista/profissionalizante e do moralismo chinfrim – criação das matérias de Moral e Cívica e EPB (estudos dos problemas brasileiros), escolas com ensino religioso, etc -, a ditadura militar ampliou esse fosso e até pouco tempo (das décadas de 60 até 90) as escolas do ensino superior eram públicas, de difícil acesso aos pobres e de acesso garantido aos filhos das classes A e B.

Essa situação com o avanço do ensino privado e com a criação de sistema de cotas (sociais, negros, índios) no ensino público, começou com as universidades e institutos federais, em que filhas e filhos de trabalhadoras domésticas, entre outros serviços menos qualificados (catadores, porteiros, operários, etc) têm acesso ao ensino superior.

A professora cita ainda a crescente barbarização da sociedade voltada ainda a transmissão de conhecimentos, voltada à formação de uma mão de obra cada vez mais pauperizada. Hoje temos diversas categorias, antes valorizadas, em condições uberizadas. É frequente encontrarmos profissionais que passaram por um banco de faculdade ou universidade com dois, três empregos ou em subempregos.

A educação emancipadora, segundo Silvana Souza, está intrinsecamente ligada à habilidade humana fundamental para a formação da sua consciência enquanto classe e pertencimento social. A leitura crítica evita a reprodução da conformidade reforçada no discurso, mesmo nas entrelinhas, da classe dominante.

O cenário político dos últimos anos no Brasil, avaliado pela professora, marcado por escândalos de corrupção, ataques à educação pública, cortes de recursos, evasão escolar e queda no número de matrículas impacta na política educacional diretos na organização social, margeou a descredibilização e desvalorização dos profissionais da área e a estrutura educacional.

Silvana Souza reforça a defesa da democracia participativa no processo de educação para emancipação, destaca ainda que a mesma perpassa pela participação da comunidade na gestão escolar, na tomada de decisão nas políticas públicas, na participação de conselhos e associações de pais e mestres e até mesmo na concepção da estrutura dos prédios e escolas públicas.

Neste quadrante, a professora observa a arquitetura e o modelo panóptico, estudado por Michel Foucault em “Vigiar e Punir” em que as escolas foram construídas em formato para monitorar os alunos, o que hoje foi substituído pelas câmeras de monitoramento, conforme o big brother de George Orwell em 1984.

Mesmo assim, apesar de questões econômicas, a direção e outras dependências (salas de professores, pedagogia, apoio, etc) estão afastadas das salas de aula, onde a mãe e o pai somente são chamados por ato de indisciplina, falta na frequência, nota baixa ou comportamento dos filhos na escola.

Para Silvana Souza, a educação tem uma relação direta com a política. Na conceituação de política, o professor Bresser Pereira diz que “os cidadãos não vivem isolados, eles são parte de subsistemas sociais, que são orientados por interesses. (…) podemos pensar a sociedade civil ou a nação em termos de pactos políticos ou de coalizões de classes”. Pode-se dizer que qualquer contato ou interação social faz parte do ato político.

Trocando em miúdos, tudo o que fazemos é político. Desde as relações com os familiares, vizinhos, colegas de trabalho e nos espaços em que atuamos ou estamos (casa, trabalho, casa, lazer, etc).

Essa é uma boa definição para debater esse período em que fomos invadidos por uma onde de negação, autoritarismo, da escola sem partido e da militarização das escolas como garantia da segurança, disciplina e eficácia de ensino. Educação não é isso e Silvana Souza nos coloca muito além neste percurso e nos incita a tirar os pés do chão e colocá-los na estrada.

Viviane Campos é assistente social, especialista em Política Social e em Serviço Social na Sociedade Contemporânea.
Zé Beto Maciel é jornalista

Fonte: Correio do Paraná

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